Programa do Jô de 02-05-2012
Entrevista com o prof. Ricardo Augusto Felicio da USP
13/05/2012 - 10h27
Cético fica 'sem clima' para financiamento
GIULIANA MIRANDA
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
Ser um cético do clima não é fácil no Brasil. As verbas de pesquisa são escassas, e é difícil publicar em revistas acadêmicas de prestígio.
A avaliação é de Ricardo Augusto Felício, professor do Departamento de Geografia da USP e uma das principais vozes no país entre os que negam o aquecimento global.
"Camada de ozônio? Esse negócio não existe", diz o professor, antes de afirmar que a presença do gás varia sazonalmente. Ou seja, os populares "buracos" não passariam de ficção.
É assim que ele começa uma palestra de duas horas para alunos do 1º ano do ensino médio do colégio Avicena, na Zona Sul da cidade.
A iniciativa de conversar com Felício partiu dos próprios estudantes, após assistirem a uma recente entrevista do cientista no "Programa do Jô", na Rede Globo.
De vez em quando, ele recebe grupos de estudantes interessados em saber o que seria a versão alternativa do ambiente. "É um trabalho de formiguinha", diz Felício.
O professor faz questão de avisar que há interesses políticos e econômicos por trás de conceitos científicos e de organizações como o IPCC.
"Vocês precisam saber: a ciência tem dono."
Quando uma aluna pergunta quem são esses donos, ele responde rapidamente: quem manda nos laboratórios são os mesmos que comandam o capital.
"Mas eu não sou marxista, nem ligado a nenhum partido político. É só uma constatação objetiva", disse.
"Eu já vou avisando aos meus alunos que eles vão ter de trabalhar. Aqui não vai ter bolsa", lamenta ele, que agora não quer mais "perder tempo" tentando financiamento, diz o autor do site "Fakeclimate".
Os pareceristas das revistas científicas também não costumam dar espaço para os céticos. "Eles são todos parte de um mesmo grupo. Nós acabamos tendo de publicar em revistas menores", diz Felício, que tem apenas três artigos originais em periódicos.
"Estou impressionada com tudo o que ele diz. Acho importante os alunos terem as duas versões", diz a coordenadora do colégio, Eliane Bonfim, que é bióloga.
Está aberta a temporada de céticos
MAIS INEXORÁVEL que engarrafamento em São Paulo e mais previsível que o conteúdo das matérias de Natal dos telejornais, começou com tudo a temporada de céticos do clima 2012. Desde que me entendo por jornalista, e já faz um bom tempo, todo evento internacional onde se debate energia e/ou mudança climática é precedido de um surto de noticiário de teor negacionista.
Foi assim em 1995, quando o IPCC (o painel do clima da ONU) lançou seu Segundo Relatório de Avaliação, apontando uma interferência “discernível” dos humanos no clima. Foi assim em 2001, com o Terceiro Relatório de Avaliação. Em 2002, véspera da Rio +10, quando a Exxon pediu e George W. Bush derrubou o presidente do painel, Bob Watson; em 2007, quando a mesma empresa pagou cientistas para escreverem contra o recém-lançado Quarto Relatório de Avaliação do IPCC. E em 2009, quando estourou o famoso escândalo dos e-mails roubados, o “climagate”.
Naturalíssimo, portanto, que a Rio +20 (que vai debater energia, mas não clima) seja precedida de um pico na, digamos, atividade celular dos céticos mundo afora. Os ataques se concentram, claro, nos EUA, onde a “crença” no aquecimento global virou uma das principais distinções entre democratas e republicanos e já fez até o relativamente progressista Mitt Romney mudar de ideia publicamente sobre o assunto. Neste fim de semana, o principal “think-tank” negacionista do planeta, o Heartland Institute, organiza em Chicago sua sétima conferência do clima, estrelando figuras como presidente checo, Václav Klaus, autor do impagável “Planeta Azul em Algemas Verdes”.
(A origem e o modus operandi dos negacionistas da mudança climática — que são os mesmos a também negar o buraco na camada de ozônio e, antes disso, a ligação entre o tabaco e o câncer – foi descrita pelos historiadores americanos Naomi Oreskes e Erik Conway no espetacular “Merchants of Doubt”, publicado nos EUA em 2010.)
Os respingos neste ano chegaram até o Brasil, onde um cético de novíssima cepa, um certo Ricardo Felício, geógrafo da USP perfilado no último domingo por esta Folha, anda arrebatando multidões em fóruns notoriamente científicos como o Programa do Jô. Os argumentos são os de sempre: há uma enorme conspiração ambientalista/comunista para acabar com a livre empresa, o capitalismo e o direito de ir e vir; essa conspiração tem tentáculos no “establishment” acadêmico e domina as publicações científicas; e é por isso que mentes brilhantes como o doutor Felício são perseguidas e não conseguem publicar seus dados nos periódicos com “peer-review”, tendo de ostentar currículos relativamente acanhados.
A safra negacionista 2012, porém, provavelmente acabará fazendo mais bem do que mal à ciência. Por dois motivos: primeiro, ao elevar o perfil de um assunto para o qual o público não dá mais a menor bola (“falem mal, mas falem de mim”), e num momento no qual alguns cientistas, como o brilhante porém algo alarmista James Hansen, da Nasa, declaram que o mundo já acabou de qualquer jeito.
Segundo, porque o Heartland cometeu na semana passada aquele que provavelmente foi o pior erro de relações públicas de sua história: uma campanha publicitária com outdoors que trazem a frase: “Eu ainda acredito em aquecimento global. E você?” e fotografias de gente do bem como o Unabomber, terrorista americano, e o ditador Fidel Castro.
Segundo reportagem de Suzanne Goldenberg no jornal “The Guardian”, o faux pas já custou ao Heartland associados, como o cientista e cético Chris Landsea, especialista em furacões, e, o que é mais grave, doadores corporativos. Nesta semana, a Eli Lilly, a Pepsi co. e o banco BB&T anunciaram que vão parar de dar dinheiro à organização ultraconservadora. Acharam que comparar os “crentes” na mudança climática com assassinos seriais poderia fazer mal às suas respectivas imagens. Hm. Jura?
Jogo dos erros 3
SEXTA-FEIRA, 4 DE MAIO DE 2012
Roberto Takata
Ricardo Augusto Felício, da Geografia da FFLCH/USP, deu uma entrevista ao Programa do Jô na quarta-feira (02/mai/2012). É uma entrevista de quase meia hora de duração, então o trabalho de transcrição é pesado. Publicarei aqui os trechos em várias postagens, junto, claro, com as contestações das alegações do geógrafo.
1'13: "Começa que já nem é uma teoria [Jô Soares falava sobre o derretimento do gelo do continente antártico pelo aquecimento global]. Isso é uma hipótese, então não (sic) carece de prova científica."
O professor já começa com uma estranha concepção de hipótese (muito comum entre os negacionistas da evolução) como uma conjectura sem base. Sendo que, em ciências, hipótese é uma explicação testável para um fenômeno em particular, enquanto que teoria é uma explicação testável para uma classe mais ampla de fenômenos.
1'25: "Não tem prova científica do aquecimento global. São 26 anos, na verdade são 3.000 anos que essa história já existe. Nossos pesquisadores da equipe da ClimaGeo já foram buscando essa informação. Já se discutiu isso nas ágoras das pólis gregas: se cortasse árvore iria mudar o clima do planeta. No senado romando se fariam ou não os aquedutos porque iria mudar o clima. E por aí foi até hoje nós estamos com essa historinha, mesma coisa: o clima vai mudar, o clima vai mudar, o homem mexe no planeta, não sei o quê e não mexe nada."
Deixando de lado a questiúncula a respeito de provas e indícios, há indícios muito sólidos do aquecimento global como apresento na série sobre o aquecimento global antropogênico.
2'38: "A gente tem que tomar muito cuidado com isso porque isso são ações locais e não são ações planetárias. [...] As alterações são muito pequenininhas, as cidades de São Paulo faz o seu microclima por exemplo, né. Aí o clima global é outra coisa. O discurso desse pessoal é que a cidade altera o clima do planeta, portanto a cidade tem que se adaptar à mudança do clima que ela mesmo fez. Mas peraí, é um raciocínio circular, né?"
O professor está correto em diferenciar alterações locais de microclima de alterações em escala global. Mas ele cria um espantalho ao dizer que a questão é a alteração em uma cidade em particular. A quantidade de gases-estufa (em especial o CO2 - e também o metano) lançada na atmosfera é em escala global - por cidades e campos espalhados por todo o globo.
(Detalhe menor: se alguém defendesse o espantalho criado por Felício, seria um argumento errado, mas não circular.)
3'11: "Não, o gelo derrete e congela de novo, né? Tem os ciclos, isso já é muito conhecido, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Primeiro que o próprio cenário de guerra era o cenário polar, né? A gente está acostumado a sempre ver o mundo naquele... no planisfério, acha que os EUA está do lado de cá, a Rússia está do outro lado, eles vão se matar por mísseis por cima do Atlântico, né? Não, eles vão se matar em cima do polo. Na verdade eles estão pertinhos um do outro, né? Então conhecimento do gelo, já na época militar, já é muito difundido. Então o próprio Ano Geofísico Internacional em 1957 até 1958, estendido até 1959, a primeira missão dos americanos foi atravessar os polos e inclusive colocaram um submarino nuclear no polo. Isso exatamente [por baixo da calota polar]. O primeiro foi o submarino Nautilus, que conseguiu em 1957 atravessar o polo todo, e o submarino Skate, ele conseguiu furar o gelo, quer dizer, eles já sabiam exatamente onde estão as dolinas, né, que são as aberturas no gelo do ártico pra poder colocar arma de guerra lá. Então o clima e o militarismo estão sempre andando juntos."
De fato, há um ciclo de derretimento e congelamento do gelo polar. Mas ocorre que, pelo que podemos saber, a cada ciclo *menos* gelo congela do que o que derreteu (Figuras 1 e 2)
Figura 1. Variação da extensão de derretimento do gelo ártico. Fonte: GISS/Nasa.
Figura 2. Variação da massa glacial antártica. Fonte: Nasa.
4'30: "Não, não [não está subindo]. O nível do mar continua do mesmo lugar. Tem, tem [esse papo]. Essa história também, ah, as calotas estão derretendo. Não. Primeiro que se fosse derreter alguma coisa, teria que ser a Antártida, então aí sim você teria a elevação do nível considerável. Mas, pra derreter a Antártida, cá pra nós, você teria que ter uma temperatura na Terra, assim, uns 20 ou 30 graus muito mais elevado."
4'56: "Não [o nível do mar não está subindo]. Ele tem pequenas variações. Por exemplo, só o El Niño, que é um fenômeno completamente natural, varia o mar meio metro. E aí, os piores cenários do IPCC, que é o Painel Intergovernamental para Mudanças do Clima, o pior cenário deles é 50 cm. Em 100 anos."
É verdade que há oscilações no nível dos oceanos, mas os dados mostram uma tendência de aumento. Vide o gráfico na resposta ao Molion (Figura 4). E como vimos na Figura 2, a Antártica está perdendo gelo, mesmo longe desses 20 graus de variação. O pior cenário é um pouco maior:59 cm (excluindo os efeitos da mudança na dinâmica do gelo), mas a questão é que seria uma elevação permanente e por todos os oceanos - e não uma alteração temporária e localizada.
5'23: "Tem [uma medição feita pelo capitão Cook]. Acho que é de 1780, mais ou menos. No mesmo lugar, o nível do mar está no mesmo lugar."
Não está no mesmo lugar nem ali. O nível está subindo - mesmo a região da marcação não sendo uma região geologicamente inerte conforme comentado na resposta a Molion.
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Upideite(04/mai/2012): Seguem mais trechos da transcrição.
5'37: "Tem uma situação mais engraçada. Eu fui fechar minha conta num banco que se diz sustentável, essas coisas. Eu odeio essa história, né? 'Mas o senhor faz o quê?' 'Eu sou professor de climatologia.'Uh! O mundo vai acabar!' Eu: 'Ai, meu deus...' E assim, as pessoas estão desesperadas. O mundo vai acabar. O aquecimento global virou o bode expiatório para todos os males da humanidade."
Tirando a questão anedótica (no sentido de ser só um exemplo sem representatividade estatística) e o franco exagero como "bode expiatório de todos os males da humanidade", há, sim, uma parcela dos defensores da hipótese do aquecimento global que exageram nas consequências - ultrapassando o limite do catastrofismo. É questão de uma análise serena sobre os dados, indicando uma tendência de aumento da temperatura vinculada a efeitos da atividade humana (emissão de gases-estufa e modificação do uso da terra, entre outras) e que há um bom grau de incerteza a respeito da situação futura. Nesse cenário de incerteza é que devemos ser cautelosos e tomar medidas para evitar possíveis consequências ruins - o princípio da precaução.
6'16: "Esse [o efeito estufa] é o pior de todos. Esse é uma física impossível. De jeito nenhum [o mundo acaba em 2012]. O efeito estufa é a maior falácia científica que existe na história, né? Primeiro que ele é baseado num conceito científico que não existe. A Terra tem essa temperatura porque ela tem atmosfera, recebe energia do Sol, tem uma interação com a atmosfera e por lei dos gases, note, não é uma teoria, é a lei dos gases: pressão, temperatura, né?, e volume. Então por causa de ter uma atmosfera, nós temos essa temperatura. Ai, eu adoro essa discussão que os aquecimentistas, que são os que trabalham pro lado do aquecimento global: 'Não, o maior exemplo de que o CO2 realmente acaba com o planeta Terra, acabaria com o planeta Terra é Vênus.' Aí eu falo: 'Ah é?' 'É.' 'Então qual é a pressão atmosférica na superfície de Vênus?' 'Hã, não sei.' 'É. São 90 vezes a pressão atmosférica da Terra.' Portanto, a temperatura lá é de 400 graus na superfície, não é por causa do CO2, é por causa da pressão atmosférica da atmosfera de Vênus. Não, essa física [do efeito estufa] não existe.'"
Concordo em um ponto com o entrevista: o mundo não acaba em 2012. Mas a preocupação não é com 2012, 2013, 2014 (bem, essa é pela Copa)... mas, sim, com um cenário de 20 a 30 anos ou mais. Quanto ao efeito estufa, ele não é baseado em um conceito científico: é baseado em dados reais - da natureza e de laboratório. O efeito estufa é, sim, o efeito de aumento da temperatura pela presença de uma atmosfera. Mas a lei dos gases ideais não pode ser a explicação pelo simples fato de se ignorar o fluxo de energia: à noite a temperatura atmosférica é menor, mesmo se a pressão local não se alterar. Por outro lado, Mercúrio tem uma temperatura superficial média muito maior do que a da Terra (167°C contra 15°C), mesmo com uma atmosfera com uma pressão de apenas 10^-15 bar, em comparação com 1,014 bar em nosso planeta.**
O princípio físico do efeito estufa é simplesmente a capacidade térmica (grandeza que relaciona a variação de temperatura de uma substância ao receber uma determinada quantidade de energia) dos gases e o perfil do espectro de absorção de energia eletromagnética dos gases.
Além disso, o papel do CO2 na temperatura de Vênus é bem estabelecido, vide, p.e Wildt (1940),Pollack et al. (1980), Prinn & Fegley (1987).*
8'07: "Que não existe. Camada de ozônio é uma coisa que não existe. A história do ozônio é conhecida como, né, nos cientistas sérios, não esses que estão aí vendidos, chapa-branca que a gente chama, não é? Trabalham pra governos, empresas, etc. e tal. Cientistas sérios, o próprio pai da coisa, é o Dobson, que no Ano Geofísico Internacional se propôs a ir a Antártica justamente pra saber qual era a variação do ozônio na camada... na calota polar. Ele já sabia que o ozônio desaparecia completamente na Antártida. E aí, de lá pra cá, os caras desaparecem com essas informações e falam que é o seu desodorante que destrói a camada de ozônio."
Verdade que, tal como o degelo e o congelamento e o nível dos oceanos, há uma variação cíclica. Porém, há uma tendência de longo prazo nessa variação (Figura 3). A concentração de ozônio sobre a região Antártica tem uma tendência de queda desde o início das mediçõesa década de 1970 a 1980***, a tendência é revertida em meados da década de 1990 - quando as medidas de banimento dos CFCs surtiam efeito (Figura 4).
Figura 3. Evolução da concentração atmosférica de ozônio sobre a região antártica. Fonte: Nasa.
Figura 4. Evolução da concentração atmosférica de CFCs - em verde, região antártica. Fonte:NOAA.
Além disso, está bem estabelecido em laboratório a ação de moléculas de clorofluorcarbonos na decomposição de ozônio, por exemplo, Wong et al. 1992.
9'09: "É, aí quando você vai ver o que acontece, é a quebra das patentes do CFC, dos gases refrigerantes. Então em 1987 começam a terminar as patentes, elas começam a se tornar públicas, você não precisa mais pagar royalties pra elas, então a indústria toda que detém essas patentes lançam um substituto chamado HCFC, que é um organofluorclorado como qualquer outro, mas custa, né, o CFC passa a custa US$ 1,38/kg, o outro passa para US$ 38/kg. Mas a grande vantagem é que ele não funciona em nenhuma das geladeiras anteriores, ar-condicionado e tudo o mais. Então é extremamente sustentável você ter que vender, jogar tudo fora e comprar tudo novo. Hoje as patentes vencem em 25 anos, então o discurso agora é os HCFCs, milagrosamente se descobriu que eles também fazem mal pra camada de ozônio e aquecimento global."
A ação do HCFC sobre o ozônio era conhecida desde o começo, ocorre que, à época, era uma das melhores alternativas, já que, por sua meia-vida mais curta, seu efeito é muito menor do que os freons usados até a época do banimento: e.g. Solomon et al. 1992; Ravishankara et al. 1994;
*Upideite(07/mai/2012): adido a esta data.
**Upideite(11/mai/2012): Há também uma inversão de causalidade - a atmosfera de Vênus não é quente por causa da pressão, mas a pressão é alta por causa da temperatura; do mesmo modo como uma fonte externa de energia aquece a água da panela de pressão, fazendo com que a pressão interna aumente.
***Upideite(14/mai/2012): Para uma revisão sobre a camada de ozônio e o papel dos CFCs, vide Rowland (2006).
Updeite(14/mai/2012): Nos comentários, Alexandre Lacerda, indica textos sobre o tema que ele traduziu do Skeptical Science: "O Guia Científico do Ceticismo quanto ao Aquecimento Global" e "Os argumentos céticos e o que a ciência diz sobre eles".