Ele é torcedor do Flamengo, adora Ronaldinho Gaúcho, curte o funk de Os Hawaianos e gostaria de assistir a shows dos MCs Sapão e Marcinho, funkeiros de sucesso no Rio. Nascido em uma aldeia guarani no litoral paulista, Vanderlei Fernandes tem 20 anos e uma história de traumas, resistência e superações.
Com albinismo, dificuldades de visão e necessidade de acompanhamento médico especial, Vanderlei teve uma infância difícil. Não pode viver em sua aldeia, em São Sebastião (SP), onde moram seus pais e avós. Hoje, adulto, ele continua visitando a tribo, mas o tipo de vida na aldeia e a exposição ao sol de sua pele frágil podem lhe causar problemas graves de saúde.
Não bastassem as dificuldades da vida, a condição indígena de Vanderlei o obrigou a passar por uma adversidade adicional: a tutela da burocracia de organismos de Estado, como Fundação Nacional do Índio (Funai) e Fundação Nacional de Saúde (Funasa). E sofreu. Continua sofrendo, sentindo-se ameaçado.
Nos últimos meses, o jovem guarani tem vivido desconfiado. O comportamento foi agravado por mais um capítulo do pesadelo da insegurança juvenil de ver a casa onde mora ser invadida, em dezembro do ano passado, por policiais que investigavam denúncias de irregularidades na Casa do Índio, no bairro da Ribeira, na Ilha do Governador, onde vive desde criança.
Em 1996, aos 4 anos, Vanderlei começou a sofrer com a burocracia da máquina pública federal ao ser envolvido em uma ação judicial de adoção na Justiça Federal de São Paulo. Ainda menino, teve de aprender a superar os limites de sua condição de criança com necessidades especiais. Sua avó, que pela cultura de seu povo tem ascendência sobre as crianças da família tribal, foi sua protetora contra a força das leis dos brancos. Em abril de 1996, o Estado contou a história da disputa pelo menino albino.
Vanderlei não gosta de falar sobre o processo de guarda, que terminou por ficar com sua família índia, nem de comentar a invasão policial. Nem gosta de estranhos. E parece ter pânico diante de situações confusas.
O episódio da invasão policial ao abrigo da Ilha, há meses, não foi o primeiro. A polícia havia entrado na Casa em 2002, provocando medo entre os abrigados, quando acompanhou representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que investigavam denúncias de maus-tratos no abrigo.
"São denúncias absurdas", rebate Eunice Cariri, fundadora da Casa, que existe desde 1942. Indigenista aposentada, ela tem 76 anos. Afirma que a instituição é vítima de perseguições políticas. "O que querem é o prédio. Procuram motivos para tomar a Casa, que foi construída em mutirão por nós com a ajuda dos próprios índios", diz a indigenista. "Mas não conseguem. Nessa pressão, já me tiraram um DAS (cargo público). Para mim, não tem qualquer problema. Tenho minha renda. Mas com isso, na verdade, o que fizeram foi tirar ajuda dos índios necessitados", lamenta Eunice.
Habituada às divergências entre brancos e suas leis e os índios e seus diferentes hábitos e culturas, ela liderou a resistência da Casa quando o menino foi alvo da disputa na Justiça Federal em São Paulo. Um casal paulista pedia a adoção, mas a autoridade da avó prevaleceu. E o menino Vanderlei permaneceu no abrigo fluminense, onde estudou e recebe acompanhamento neurológico e de fonoaudiologia.
Dificuldade. Dias atrás, o agora jovem Vanderlei venceu mais uma vez a introversão e concordou em se mostrar um pouco ao Estado, depois de 15 anos da primeira reportagem, quando, aos 4 anos, ainda apresentava dificuldades para falar.
Após algumas horas de tentativas de conversa, frustradas - e de ouvir de longe a entrevista feita com representantes da Comissão de Amigos da Casa do Índio -, ele abriu uma caixa de papelão, do tamanho de uma embalagem de sapatos e tirou dela fitas cassete. Ao som de suas músicas preferidas, sorriu, divertiu-se e contou que gosta de futebol.
A música mexe com ele. Ao som do funk, Vanderlei muda o semblante. E topa falar de outros prazeres e de sonhos de adolescente. Como o desejo de ver o Flamengo jogar. Ele torce por Ronaldinho Gaúcho. "Eu grito gol", diz ele, que foi alfabetizado em português, em escolas da Ilha. "Eu parei de estudar. Estava repetindo", explica.
A TV é hoje a ligação do rapaz com seu Flamengo. Ele nunca foi ao Maracanã ver seu time em campo. E esse é mais um dos desejos escondidos do jovem que não gosta muito de sair de casa. Mas sairia, sim, diz ele, também para assistir a um show de funk com MC Sapão, outro de seus ídolos na música.
"Gostaria de ver um show", confessa, curtindo a música no pequeno aparelho de som que toca as fitas cassete. Mais à vontade, dança ao som do ritmo preferido. Dos Hawaianos, ele tem um hit na ponta da língua.
"Eu gosto do Vem Quicando", afirma, sentado na cama do salão térreo na Rua Pires da Mota, que fica a cerca de 20 minutos de carro do Aeroporto do Galeão. Nos palcos, Os Hawaianos que encantam Vanderlei dançam e cantam com seus integrantes de cabelo pintado de branco, como os fios que cobrem Vanderlei.
Entre os amigos da casa, muitos convivendo com ele há anos, Vanderlei é brincalhão e comunicativo. "É alegre", conta Anita dos Santos, de 20 anos, que foi morar na casa ainda bebê, com a mãe, Maria Clara. Anita e a mãe, que sofre de distúrbios neurológicos, são índias kaiuá, de uma aldeia de Mato Grosso do Sul.
A menina foi criada na Casa e concluiu o ensino médio em escolas do bairro. Hoje, Anita tem curso de computação na Faculdade Estácio de Sá da Ilha e página no Facebook. E se prepara para prestar um concurso nas Forças Armadas. "Quero seguir a carreira militar", diz ela, que já trabalha na função de "cuidadora" na Casa.
A cargo de Anita e de 14 colegas "cuidadores" estão jovens índios oriundos de diversas aldeias. Como o xavante Januário, de 47 anos, que sofre de hipotireoidismo. Ele ocupa seu tempo com trabalhos manuais e pinturas. "Estamos planejando fazer uma exposição dele", conta Eunice.
Também xavante, o adolescente Mario Juruna, de 14 anos, neto do ex-deputado Mario Juruna, vive lá há seis. "Quero ser advogado", conta, ao lado de Leandro, o menor deles, guarani como Vanderlei. São amigos também de Francisco, o Chiquinho, um apurinã de 17 anos que chegou subnutrido, precisando de diálise. Transplantado, Chiquinho é hoje é um garoto bem disposto. Mas carrega uma perda de audição adquirida durante a infância. Chiquinho é o desenhista da turma.
O grupo tem ainda o uaurá Kaíke, de 11 anos, que vive na Ilha do Governador desde a cirurgia corretiva na posição do pé, e Joel Carlos Apurinã, de 24, um cadeirante que lá mora há 12 anos. São eles os companheiros de Vanderlei no cotidiano da Casa e parceiros nos jogos de videogame.
Vanderlei é fissurado em X-Men. E sonha também com o dia em que poderá ter um aparelho PlayStation 2 para curtir o jogo de Wolverine, o super-herói atordoado, meio humano, com garras de metal e o poder de regeneração dos ferimentos do corpo. Wolverine nunca se entrega.
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Conheça a Aldeia Guarani Krukutu em São Paulo
História da Aldeia
Estamos em uma das três Terras Indígenas Guarani da cidade de São Paulo. A aldeia Krukutu e Tenondé Porá são as duas comunidades existentes no extremo sul de São Paulo, no bairro de Parelheiros, na região da represa Billings. A terceira T.I. fica no Pico do Jaraguá.
Nossa aldeia tem origem nas famílias que se fixaram na região de Parelheiros na década de 1950. Essa região sempre foi local de passagem para o nosso povo, os Guarani-Mbya que vinha da região das aldeias do Paraná e Rio Grande do Sul para o litoral. Nós nos fixamos nas tekoas, os lugares escolhidos pela facilidade do acesso à yvy marae'i, a Terra Sem Mal, que fica além mar. Nestes lugares é que se pode reproduzir o nhandereko, o modo de ser guarani.
Em 1955, a família do Sr. Nivaldo Martins da Silva Karai Roka Ju, liderados pela sua avó D. Vitalina, que primeiro se fixou na área que é hoje a aldeia vizinha Tenonde Porã ou da Barragem.
Eles vinham de Mangueirinha no Paraná e passaram algum tempo em Itariri, em Santos e Rio Silveira ( São Sebastião) e ainda retornaram por uma ano para o Paraná antes de irem morar na futura aldeia.
Chegaram ali depois do convite feito por um sitiante japonês chamado Kugo Igo. Ele tinha visto a família do seu Nivaldo na Ponte do Socorro, onde tentavam vender seu artesanato. O sitiante perguntou se eles não queriam ir para a terra que tinha. Os Guarani poderiam ficar morando lá e em troca ajudariam Igo na sua plantação de mandioquinha que era vendida no Ceasa. Um tempo depois, o sitiante resolveu ir para o Japão e deixou para o pai de seu Nivaldo, Eduardo Martins da Silva, o documento que passava a terra à eles.Nessa época a região que é hoje a Aldeia Krukutu, era usada para caça e para extrair material para o artesanato e para nossas casas. Em 1975, Dorinha da Silva e seu filho Manoel Vera se fixaram na área. Manoel, ainda mora na aldeia e conta:
"Quando meu pai morreu, eu tinha 13 anos e tive que fazer uma casa para colocar a minha mãe. Aí que conheci um japonês aqui na Barragem, que era Iakusa Nakamora, a gente chamava ele de Sensei. Ele veio um dia aqui pescar e disse que já que tínhamos um passado aqui, eu podia ficar com o terreno. Aí ele me ofereceu esse pedaço de terra."
A primeira liderança da Aldeia Krukutu foi seu Manoel, quem o substituiu mais tarde foi o Sr. Nivaldo, posteriormente Ventura Papa, Marcos Tupã e agora Manoel Werá novamente.
Na década de 1970, mesmo com a posse da terra dada pelo Sr. Nakamura para a comunidade, nós sofremos uma série de agressões de grileiros. A regularização de nossa tekoa aconteceu em 1987, depois que os caciques Guarani do estado de São Paulo lutaram na justiça para terem suas terras reconhecidas. Quem representava a nossa aldeia, nesta época, era Manoel da Silva Werá.
A luta para oficializar nossas terras começou em 1979 e contou com o apoio do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Funai e governo do estado de São Paulo, gestão do governador Franco Montoro.
Em 1985, o Sr. Nivaldo, até então chefe da Tenondé Porã, veio morar aqui na Krukutu e com ele chegaram também novas famílias que vinham de Palmeirinha, no Paraná.
Com o crescimento acelerado e desordenado da região e a falta de espaço para manter o modo de vida tradicional guarani nos atuais 25,88ha, entramos no ano de 2001, juntos com as aldeias Tenonde Porã e Jaraguá, com o pedido de redemarcação de nossas áreas. Na atual área não conseguimos que nossas plantações sejam boas e não podemos mais extrair o que precisamos da mata e da terra que é pequena.
Sobre a redemarcação, o ultimo parecer da Funai no ano 2004, foi contrario a ampliação. O estudo pedindo a ampliação, segundo a fundação, estava incompleto. Em 2001 também a nossa Associação Guarani Nhe' ê Porã foi legalizada, também foi o ano que construímos a nossa atual Casa de Reza.