No final da década de 1950, quando bebês começaram a nascer com malformações congênitas após as mães terem tomado talidomida para combater enjoos matinais, médicos e pesquisadores ficaram em choque. Como isso podia estar acontecendo se em camundongos o sedativo tinha se mostrado seguro? Tão seguro, pensavam, que poderia ser usado até por gestantes.
O caso poderia ser hoje uma excelente justificativa para grupos de direitos dos animais – que pregam que testes em cobaias são inúteis porque as reações das drogas no organismos delas são muito diferentes do que no nosso – não fosse um detalhe. Essa falha acabou se tornando um dos marcos para que os estudos com animais se tornassem ainda mais rigorosos.
Diante do cenário de tragédia, com mais de 10 mil casos em cinco anos os cientistas voltaram aos testes com animais, dessa vez com coelhos e macacos, e viram que neles também havia malformação fetal, apesar de isso não ocorrer em roedores.
A conclusão foi simples: o problema teria sido evitado com o teste em mais de uma espécie. Daí que surgiu o protocolo internacional, seguido por atualmente agências reguladoras de Estados Unidos, Europa e do Brasil, de que antes de uma nova droga chegar a humanos, é preciso fazer testes de segurança em pelo menos duas espécies, sendo uma de não roedores.
Essa história foi lembrada por alguns pesquisadores na semana passada por conta da invasão ao Instituto Royal e do subsequente bombardeio que as pesquisas com uso de animais sofreram – que levaram também a uma manifestação em peso da comunidade científica.
Necessidade. Paixões e defesas de classe à parte, a mensagem que todas as entidades passaram é: em todo mundo se buscam alternativas para substituir o uso de animais e alguns métodos já eliminaram sua necessidade em algumas etapas, mas ainda não há o desenvolvimento completo de uma nova droga sem testá-la em bichos.
E isso em todo o mundo. Mesmo a Europa, que é mais rigorosa nos cuidados com os animais e já proibiu seu uso em testes de cosméticos, utiliza por ano cerca de 12 milhões de animais em estudos farmacológicos, segundo o último relatório de estatísticas da União Europeia. Apenas chimpanzés são proibidos. Os EUA também estão encerrando estudos com esses grandes primatas.
Por outro lado, assim como evoluíram as pesquisas de fármacos, também se desenvolveu toda uma linha de estudos para melhorar os cuidados com os animais de laboratório, centrada principalmente em três pontos: buscar alternativas, reduzir o número de animais usados e aprimorar os métodos a fim de reduzir a dor e o sofrimento.
Foram essas diretrizes que, no Brasil, balizaram a criação da Lei Arouca, que regulamenta o uso de animais em pesquisa e entrou em vigor em julho de 2009. Ela criou, por exemplo, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que credencia instituições que fazem estudos com cobaias e é responsável por zelar pelo bom tratamento delas.
Segundo Marcelo Morales, que coordena o Concea, desde sua criação várias denúncias de maus-tratos foram apuradas.
“Chegamos a suspender as pesquisas em uma universidade inteira, que depois se regularizou.”
Entrave. De acordo com especialistas ouvidos pelo Estado, o maior entrave para eliminar o uso de animais é não se conseguir ainda simular por outros meios, com precisão, o complexo funcionamento do organismo. “É bem verdade que podemos minimizar o uso dos animais, mas eliminá-lo ainda não dá, porque não temos como ainda avaliar impactos do uso de longo prazo ou reprodutivos”, afirma Eliezer Barreiro, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos, do qual o Instituto Royal faz parte.
Alternativas em algumas etapas já conseguem reduzir o número de cobaias. Na Fiocruz, por exemplo, pesquisadores do grupo de estudos de Métodos Alternativos aos Ensaios Toxicológicos, ligado ao Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, buscam saídas para testes de irritação ocular de colírios e pomadas oftalmológicas.
No processo-padrão, os primeiros testes seriam em coelhos. Cientistas descobriram que, usando córneas de bois abatidos, é possível saber se o produto promove irritação severa ou corrosiva. “Se der positivo, descartamos o produto e os coelhos são poupados. Se der negativo, os estudos seguem e testamos em animal”, diz o biólogo Octávio Presgrave.
Segundo o pesquisador, pela experiência do grupo, corroborada por dados da literatura médica, o uso de métodos alternativos pode levar a redução de 70% dos custo da pesquisa.
Células-tronco. Além de poupar os bichos, outras técnicas se mostraram até mais eficientes, como o modelo desenvolvido pelo biólogo brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia, em São Diego. Ele estuda autismo e diz que, apesar dos vários anos de estudos feitos por vários grupos em roedores, ainda não se chegou a um bom medicamento. A principal dificuldade é que não dá para realmente recriar o autismo nos animais.
Ele então teve a ideia de aproveitar células-tronco dos próprios pacientes para transformá-las em neurônios e testar drogas candidatas diretamente neles. “Nos pacientes, os neurônios fazem um número menor de sinapses do que em pessoas normais. Os neurônios que desenvolvemos mostraram o mesmo problema”, explica. Com essa mudança, disse, está sendo possível evitar o uso de milhares de cobaias por ano.
Parte das drogas que o pesquisador está testando para autismo está no mercado para outras doenças. Como elas já passaram por testes de segurança, Muotri espera que se elas se mostrarem efetivas nos neurônios criados, talvez seja possível mudar no futuro os protocolos. “Passaríamos direto para os testes em humanos.”
Este modelo pioneiro já foi adotado para outras doenças, como arritmias cardíacas. As células do coração desenvolvidas a partir das células-tronco agem como o próprio órgão, inclusive mostrando batimento cardíaco. Nesse caso, inclusive, elas apresentam a mesma arritmia. “É realmente uma cópia do que ocorre no indivíduo. Dá para checar direito nela diferentes remédios e ver como ela reage a cada um. É o futuro da medicina”, diz.