quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lutzenberger, o profeta da economia sustentável







http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=93250


Notícia da edição impressa de 14/05/2012

Há exatos dez anos morria José Lutzenberger, um dos ecologistas pioneiros do ambientalismo brasileiro, cujo engajamento ativista e empreendedor deixou para as empresas modernas o legado da preocupação com os recursos naturais do planeta

Adriana Lampert


ACERVO FAMILIAR/reprodução CARLOS STEIN/divulgaçÃO/JC


Nunca antes na história se debateu tanto sobre as questões ambientais, em todos os níveis: econômico, político, social. Considerado assunto de hippies ou idealistas há 40 anos, o desenvolvimento sustentável – do ponto de vista financeiro, coletivo e ambiental – já é palavra de ordem em muitas empresas brasileiras. Algumas ainda engatinham, usando o termo mais na hora do discurso do que na prática. Outras implementam cada vez mais iniciativas sustentáveis, e até avançam sobre a legislação, buscando, é claro, aumentar a competitividade.

Isso porque grande parte da sociedade já não aprova mais quem polui ou não tem um mínimo de cuidado com o meio ambiente – o que reflete no consumo. E se há pessoas mais conscientes sobre a importância da preservação dos recursos naturais do planeta, dentro ou fora das companhias, pode-se afirmar, sem exageros, que uma das personalidades que mais contribuíram para esta mudança de olhar na sociedade foi José Lutzenberger, um dos ecologistas pioneiros do Movimento Ambientalista no Brasil, falecido em 14 de maio de 2002.

Engenheiro-agrônomo, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com pós-graduação em Química pela Universidade Norte-americana de Louisiana, Lutzenberger foi por 14 anos alto executivo da Basf, multinacional alemã de química agrícola, pela qual atuou na Europa, América Latina e África. Às vésperas de ser promovido a diretor na Europa, o ecologista, então com 44 anos, decidiu dar um fim ao conflito ético que lhe perturbou por um ano inteiro, devido ao fato de que a indústria em que trabalhava – assim como as demais do ramo químico – estava entrando fortemente na agricultura.

“Ele era um assessor-técnico e vendia adubos, mas abandonou a carreira e o alto salário porque a nova postura da corporação exigia que passasse a vender agrotóxicos, sendo ele um naturalista”, explica a amiga, jornalista e escritora Lilian Dreyer. Era início da década de 1970 quando Lutzenberger deixou a Europa para voltar a Porto Alegre, sua cidade natal, com a família.

Chegando à Capital, conheceu o então advogado Augusto César Carneiro, na época simpatizante das ideias de Henrique Luiz Roessler, defensor da natureza e um dos primeiros ecologistas gaúchos. “Roessler foi pioneiro da defesa da natureza do Estado”, recorda Carneiro, que tornou-se companheiro de Lutzenberger na luta ambientalista.

“Quanto conheci Lutz, o Roessler já tinha falecido. Decidimos então tocar suas ideias adiante, porque iam ao encontro do que pensávamos, e fundamos uma entidade ativista, junto com nossa amiga em comum Hilda Zimmerman”, recorda Carneiro, que ainda é militante apaixonado da causa ecológica. Com o propósito de ser agente-ativista, surgiu a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), entidade pioneira em nível mundial e uma das mais antigas da causa ambientalista.

Agapan defende que é preciso crescer sem destruir o meio ambiente

A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) busca formas de desenvolvimento que integrem as atividades humanas (inclui as iniciativas econômicas) com a natureza. “Não é só uma questão tecnológica, mas de pensamento de vida. Nunca fomos protecionistas, mas sempre estivemos focados em acordar a humanidade para a necessidade de se desenvolver de outra forma”, diz o atual presidente da entidade, Francisco Milanez. “Prova de que estamos no caminho certo é que a ciência confirmou 30 anos depois as nossas previsões”, alfineta, referindo-se aos inúmeros entraves ambientais detectados tardiamente, como alterações climáticas abruptas, desmatamento, problemas gerados pela poluição e pelos lixões, entre outros tantos.

Chamar a contribuição de Lutzenberger e do grupo de ecologistas que acompanharam sua caminhada de vanguardista é o mínimo. Basta verificar a importância dos debates que a Agapan passou a promover, a fim de conscientizar e esclarecer simpatizantes do movimento, universitários, integrantes de ONGs, agricultores, empresários e políticos. “A atuação sempre foi essencialmente política, com visão ecológica”, pontua a jornalista e escritora Lilian Dreyer. “Uma das primeiras conquistas foi acabar com a poda indiscriminada das árvores das ruas na Capital. Na época, a contestação mudou a postura da municipalidade, apesar de anos mais tarde terem ocorrido retrocessos”, lamenta.

Integração com a natureza, ao invés de agredi-la, era a proposta do grupo. A Agapan também influenciou na criação de parques, como o de Itapuã, os Aparados da Serra e do Delta do Jacuí. Logo em seguida, engajou-se na batalha da Lei dos Agrotóxicos e o Receituário Agronômico, duas das grandes vitórias do movimento ambientalista, que se multiplicou, conquistando medidas de alcance nacional. O Estado é marcado por uma cultura ecologista, que penetrou no DNA dos gaúchos, que assimilaram muito essa vivência especialmente na década de 1970”, opina Lilian. Ações como essas e outras tantas culminaram no que consumidores, não só do Estado, mas do Brasil inteiro, exigem das empresas de hoje em dia: sustentabilidade ambiental.

Pesquisa Global Online da Nielsen de 2011, por exemplo, revela que 72% dos entrevistados acreditam que devem apoiar empresas que garantam a sustentabilidade ambiental, e 46% admitem que estão dispostos a pagar mais por isso.As pessoas não se contentam mais com discursos, e já diferenciam a chamada “maquiagem verde” de iniciativas sérias.

“Não adianta distribuir sacolinhas ecológicas se não se separa o lixo dentro das corporações”, resume Milanez. Isso corrobora com as pesquisas que revelam o pensamento dos funcionários (principalmente os da geração Y, nascidos após 1980) em relação aos empregadores: internamente, as pessoas vestem a camiseta das empresas em que encontram seriedade nas questões socioambientais.

Mestre da reciclagem e do reaproveitamento de resíduos


Rincão Gaia foi erguido originalmente em uma área devastada 

pela exploração de basalto | Foto: PAULO BACKES/DIVULGAÇÃO/JC

Falar de reciclagem de lixo e de reaproveitamento de resíduos sólidos não é mais uma novidade, apesar de ainda ser necessário um longo caminho para que a implementação prática dessas iniciativas alcance um patamar ideal, ou quase isso. Mas não há como negar que houve avanços nesse sentido. Porto Alegre é – por mais que ainda tenha falhas – um referencial em reciclagem de lixo no País. A cidade natal de Lutzenberger foi uma das primeiras a entrar para o “negócio” das usinas de reciclagem.

Em 1987, o ecologista criou a Fundação Gaia, da qual foi presidente vitalício. O objetivo era tratar da disseminação da agricultura regenerativa, educação ambiental e reciclagem de lixo urbano. Lutzenberger foi mais do que um difusor do assunto e não se limitou à Capital. Ele criou usinas de separação de lixo em Novo Hamburgo, onde formou famílias que constituíram uma série de núcleos de pequenos empresários do lixo. Se hoje em dia há coleta seletiva na Região Metropolitana de Porto Alegre, muito se deve a esse trabalho, que logo em seguida foi desenvolvido também pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) na Capital. “Hoje em dia, muitas empresas trabalham com isso”, destaca o agrônomo Paulo Backes, que colaborou com Lutzenberger em uma área de atuação do ambientalista que poucos têm conhecimento: o paisagismo.

Profundo conhecedor do solo, Lutzenberger era um paisagista “de mão cheia”, nas palavras de Backes. “Ele tinha muita compreensão de como as coisas funcionam na natureza.” Os dois agrônomos começaram juntos a implementação do parque em volta da Fundação Iberê Camargo, mas Lutzenberger faleceu no meio do processo. Ele também foi autor do paisagismo aplicado nos parques da Guarita de Torres e da Riocell (atual Celulose Riograndense), e da belíssima paisagem do Rincão Gaia (sede rural da Fundação Gaia em Pantano Grande). O local é a demonstração concreta da visão de Lutzenberger.

Situado em uma área de 30 hectares originalmente devastada pela exploração de basalto, o Rincão Gaia possui uma paisagem que integra ampla biodiversidade, com produção de alimentos, criação de animais, preservação de água e habitações feitas de material orgânico. Tudo no mais perfeito equilíbrio. Foi lá que ele fez uma série de palestras sobre agricultura ecológica e formou centenas de pequenos produtores, o que resultou na disseminação de feiras. Nelas, os produtos são livres das chamadas sementes certificadas, fruto da Revolução Verde, um eufemismo que prega a venda dessas sementes aliada a herbicidas e outros componentes.

Outra iniciativa que demonstra o empreendedorismo do ambientalista – descrito por amigos e ecologistas como extremamente inteligente e preparado no aspecto científico e dono de amplo conhecimento de causa – foi a criação da empresa Vida Produtos Biológicos, que surgiu para realizar sistemas de manejo e reciclagem de resíduos sólidos industriais.

Foi após outra das muitas vitórias do movimento ambiental em Porto Alegre, que conseguiu fechar a indústria norueguesa de papel Borregaard, em 1973, que havia há pouco tempo se instalado em Guaíba, sem nenhuma preocupação com a questão ambiental. A fábrica iria produzir celulose bruta e lançar seus resíduos químicos sem tratamento nas águas do Guaíba, com risco para a saúde de toda a população que dela se abastecesse. Mas foi a poluição do ar e o cheiro insuportável que pairava em toda a cidade e arredores que garantiram ganho de causa e o engajamento de toda a sociedade, incluindo, é claro, os militantes da Agapan.

Indústria da celulose ganhou um aliado e novas perspectivas

A luta de José Lutzenberger em defesa do meio ambiente deixou uma herança positiva para a indústria da celulose. A Booregaard mudou de nome e, ao longo dos anos, de postura ambiental. Adotando a marca Riocell, em 1982 a indústria chamou Lutzenberger e outros ecologistas para participar da inauguração de sua estação de tratamento de efluentes, investimento feito para se tornar “menos poluente”.

“Lutz ficou impressionado com o tratamento de despoluição da água, que gerava um resíduo sólido, o lodo de celulose, e logo se interessou por isso. Ele percebeu que a fábrica estava depositando os resíduos em gigantescos aterros e se propôs a desenvolver um projeto de pesquisa lá dentro”, conta o agrônomo e gerente operacional da Vida Produtos Biológicos, Fernando Bergamin. O ambientalista debruçou-se sobre o estudo do lodo de celulose, a fim de garantir que não encontraria algum contaminante, e, ao alcançar esta certeza, decidiu usar o resíduo na produção de fertilizante orgânico.

O projeto-piloto foi realizado na implementação de um parque ecológico que margeia toda a empresa, defronte para o rio Guaíba. “Aquele entorno era um aterro estéril, e hoje é um belo parque, totalmente integrado com as margens do rio. O parque foi implementado com adubos orgânicos produzidos a partir do resíduo orgânico da fábrica, entre os anos de 1984 e 1988. Durante esse período, Lutzenberger fez intensa pesquisa com o lodo de celulose, que culminou na ativação da empresa Vida, em 1988.

Com isso, o então novo empresário passou a trabalhar oficialmente com reciclagem de resíduos sólidos da celulose, implementando projeto pioneiro no Brasil. Atualmente, a Celulose Riograndense (ex-Riocell e ex-Aracruz) recicla 99% dos resíduos que produz. Além desta, outras duas fabricantes de papel, a Rigesa (de SC) e a Veracel (na Bahia) fornecem resíduos para a Vida, que também realiza trabalhos de menor porte para indústrias nas áreas de reciclagem de lixo orgânico – junto a prefeituras – e no tratamento de resíduos de curtumes, matadouros e frigoríficos.

Com mais de 3 mil clientes (produtores e cooperativas rurais), a empresa fatura R$ 8 milhões por ano. Os corretivos de acidez de solo de uso agrícola são utilizados nas lavouras de soja e os adubos orgânicos são vendidos em redes de supermercados e principais floriculturas do Estado. “Eu era jovem na época em que meu pai iniciou o trabalho para a Riocell, mas percebi que houve um grande desafio nesta decisão: suportar a pressão dos próprios parceiros do movimento ambientalista, que seguidamente adotaram uma postura mais
intransigente, questionando e recriminando a disposição e habilidade que ele tinha de dialogar com o ‘inimigo’”, observa uma das filhas do ecologista, Lara Lutzenberger. Ela e a irmã Lily hoje são as proprietárias da empresa Vida.

Luta em defesa da floresta amazônica

Além do trabalho de reciclagem que implementou em âmbito industrial e da atuação pela preservação de áreas verdes urbanas, o ambientalista José Lutzenberger foi ícone da luta internacional pela valorização e preservação da floresta amazônica. Na época em que foi secretário Especial do Meio Ambiente (1990 a 1992, durante o governo Collor de Mello), Lutzenberger fez viagens à Amazônia, e inclusive participou de um documentário britânico na selva. No período em que esteve na secretaria, apesar de enfrentar resistência dos setores burocráticos e conservadores, Lutzenberger teve papel decisivo na demarcação dos territórios indígenas. Entre os marcos, estão a defesa dos índios Yanomamis, a decisão do Brasil de abandonar a bomba atômica, a assinatura do Tratado da Antártida e a participação do País na Convenção das Baleias. Também foi graças à luta de Lutzenberger que foi implementado o Código Ambiental.

“O diferencial do Lutz no processo da causa ambiental é que ele tinha uma visão intuitiva e ao mesmo tempo muito racional. Ele foi um visionário, porque tinha uma percepção macro do que estava acontecendo e das consequências disso para a sociedade”, opina o amigo do ecologista e vice-presidente da Fundação Gaia, Franco Werlang. “Ele estava entre cinco grandes nomes que anteciparam os problemas ambientais e comunicaram de forma clara o que estava para acontecer. Graças a gente como ele, hoje em dia é difícil encontrar alguém que diga que desconhece as consequências dos impactos da ação humana na natureza.”

“Eu vejo a novela que se transformou a revisão do Código Florestal como um reflexo claro da evolução da questão ambiental na sociedade”, concorda Lara Lutzenberger, filha do ecologista que ocupa o cargo de presidente da Fundação Gaia. “É incrível a dimensão da polêmica, refletindo o quanto a sociedade está ampliando a sua percepção e inquietação quanto à relevância da preservação ambiental, tida até então como tema marginal.”

Por outro lado, observa a presidente da Fundação Gaia, as concessões que estão sendo negociadas, refletem a crise cultural, que insiste em sobrepor interesses e ambições privados aos interesses coletivos. “Se seguirmos
no ritmo de desmatamento e homogeneização da paisagem que tivemos nas últimas duas décadas,
o colapso do clima, das reservas de água e da nossa capacidade de produzir e distribuir alimento será inevitável.” Assim também falava José Lutzenberger.

Reconhecimento

Lutzenberger recebeu mais de 40 prêmios, várias distinções e homenagens especiais. Confira os principais:
  • Medalha Bodo-Manstein, conferida pela Liga para o Meio Ambiente e Proteção da Natureza da Alemanha Ocidental, em Worms, no Reno (Alemanha) – 1981
  • Medalha do Conservacionista conferida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul - 1988
  • The Right Livelihood Award, conhe-cido como Prêmio Nobel Alternativo, em Estocolmo (Suécia) - 1988
  • Integrante da Ordem do Ponche Verde, no grau de oficial, pelo então governador do Rio Grande do Sul, Pedro Simon - 1988
  • Prêmio internacional Vida Sana, Barcelona (Espanha) - 1990
  • Grande oficial da Ordem de Rio Branco pelo então presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello - 1990
  • Comendador de La Ordem Del Condor de Los Andes, pelo então presidente da Bolívia, Jaime Paz Zamora - 1990
  • Conselheiro Principal da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável - 1992
  • Prêmio World Summit Ofr Ethics 2001, conferido pelo World Summit for Ethics 2001, realizado em Kühlungborn (Alemanha), em reconhecimento por décadas de luta ambiental - 2001