quinta-feira, 17 de junho de 2010

Fontes alternativas de água: Toxicologia, Padrões de Qualidade de Água e a Legislação

A nossa colaboradora Dra. Gisela de Aragão Umbuzeiro gentilmente nos encaminhou um importante artigo relacionado à toxicologia, padrões de qualidade da ágau e legislação publicado na Seção da INTERFACEHS - Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - v.5, n.1, Resenha, jan./abr. 2010. O texto completo está disponível em http://www.interfacehs.sp.senac.br/br/sumario_secao_interfacehs.asp?ed=13

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TOXICOLOGIA, PADRÕES DE QUALIDADE DE ÁGUA E A LEGISLAÇÃO

Autores: Gisela de Aragão Umbuzeiro1; Fábio Kummrow2; Fernando Fernandes Cardozo Rei3

1 Bióloga, Doutora em Ciências - Faculdade de Tecnologia – Universidade Estadual de Campinas.

2 Farmacêutico, Doutor em Toxicologia e Análises Toxicológicas -Departamento de Ciências Farmacêuticas - Universidade Federal de Pernambuco.

3 Advogado, Doutor em Direito Ambiental - Programa de Mestrado Gestão Integrada em Saúde do Trabalhador e Meio Ambiente - Centro Universitário SENAC.

RESUMO

O lançamento de substâncias químicas provenientes de efluentes domésticos, industriais ou agropecuários, bem como o aporte de contaminantes atmosféricos nos corpos hídricos provoca modificações do estado químico e biológico das águas, comprometendo cada vez mais o fornecimento de água para seus diferentes usos. A toxicologia regulatória ocupa um papel chave na proteção dos recursos hídricos, pois é através dela que padrões de qualidade de são estabelecidos. Cada um dos usos da água tem seus critérios de qualidade específicos, os quais devem ser derivados utilizando métodos padronizados e definidos de acordo com necessidades regionais ou do país. Quanto mais dados toxicológicos forem gerados sobre uma substância, menores serão os fatores de incerteza e, portanto mais preciso o critério de qualidade adotado, garantindo a segurança dos diferentes usos da água. Este trabalho tem por objetivo informar e refletir sobre o papel da Toxicologia na definição de critérios de qualidade de água e como os mesmos se traduzem em normas legais incluindo uma avaliação crítica das normas brasileiras. Fica evidente que os critérios de qualidade de água são dinâmicos e que as normas brasileiras devem estar preparadas para atualizações periódicas. Nota-se a necessidade de mais pesquisas nessa área no país.

Palavras-chave: Padrões de qualidade de água, critérios de qualidade de água, toxicologia, contaminação da água, toxicologia regulatória.

INTRODUÇÃO E OBJETIVO

O lançamento de substâncias químicas provenientes de efluentes domésticos, industriais ou agropecuários, bem como o aporte de contaminantes atmosféricos nos corpos hídricos provoca modificações do estado químico e biológico das águas, comprometendo cada vez mais o fornecimento de água para seus diferentes usos. Nesse contexto a toxicologia regulatória ocupa um papel chave na proteção dos recursos hídricos, pois é através dela que padrões de qualidade são estabelecidos. Cada um dos usos da água tem seus critérios de qualidade específicos, os quais devem ser derivados utilizando métodos padronizados e definidos de acordo com necessidades regionais ou do país. Esses critérios vêm sendo extensivamente utilizados no mundo todo, inclusive no Brasil, e qualquer profissional que atua na área ambiental está familiarizado e utiliza, no dia a dia, os padrões de qualidade ambiental. As normas nacionais, estaduais e municipais que regulamentam o uso da água, se fundamentam nesses critérios.

Historicamente o Brasil vem utilizando critérios definidos por agências internacionais tal como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e por agências ambientais de outros países especialmente Canadá e Estados Unidos da América. Com tudo a maioria dos profissionais envolvidos na aplicação das normas como advogados, engenheiros, biólogos, ecologistas, entre outros, não recebe informações, tanto na educação formal como informal, de como esses padrões são derivados e o que eles significam. Assim, este trabalho tem por objetivo informar e refletir sobre o papel da Toxicologia na definição de critérios de qualidade de água e como os mesmos se traduzem em normas legais incluindo uma avaliação crítica das normas brasileiras.

A Toxicologia regulatória

A Toxicologia é definida tradicionalmente como a ciência dos “venenos”. Esta ciência engloba o estudo das propriedades químicas e físicas dos agentes tóxicos, seus efeitos fisiológicos ou comportamentais nos seres vivos, métodos qualitativos e quantitativos para sua análise em materiais biológicos e não biológicos e o desenvolvimento de procedimentos para o tratamento das intoxicações (LANGMAN; KAPUR, 2006). Atualmente a toxicologia possui um caráter preventivo e, entre os seus principais objetivos estão o entendimento dos mecanismos de ação dos agentes tóxicos bem como o cálculo da probabilidade de ocorrência de seus efeitos adversos de acordo com cenários de exposição. O cálculo dessa probabilidade é usualmente realizado por um processo denominado avaliação de risco, que é a uma das principais ferramentas utilizadas pela toxicologia (EATON; KLAASSEN, 2001).

O desenvolvimento dessa ciência ocorre em várias áreas distintas, entre elas, a Toxicologia clínica, forense, ambiental e regulatória. A Toxicologia regulatória tem como principal objetivo derivar valores seguros de exposição a compostos químicos, seus produtos de degradação, ou misturas complexas, baseando essa avaliação em todas as informações disponíveis na literatura e também levando em conta o julgamento de especialistas sobre quais compostos podem ser utilizados de forma segura, sem levar a níveis inaceitáveis de risco a saúde humana ou biota (VAN LEEUWEN, 2000). Os especialistas nessa área da toxicologia têm a responsabilidade de decidir, com base em dados provenientes da toxicologia descritiva e mecanística, se uma droga ou agente químico possui risco suficientemente baixo para o uso declarado.

Paracelsus (1493-1541), um médico europeu, já afirmava que “Todas as substâncias são tóxicas; não há substância que não é um veneno. A dose correta diferencia um veneno de um remédio”, estabelecendo, portanto há mais de 500 anos o conceito de dose-resposta, base da toxicologia (MONRO, 2001; LANGMAN; KAPUR, 2006). Desta forma a manifestação dos efeitos adversos de um agente não depende apenas da sua toxicidade, mas também da dose e das condições de exposição. Costuma-se classificar como muito tóxica a substância que é capaz de causar a morte de animais em ensaios padronizados (Dose letal 50% – DL50) em doses muito baixas, como 0,00001 mg/Kg de peso corpóreo, por exemplo a toxina botulínica. Já o álcool etílico tem uma DL50 de 10.000 mg/Kg, sendo considerado então pouco tóxico (EATON; KLAASSEN, 2001).

Porém os toxicologistas não se preocupam somente com a potência do agente tóxico, mas sim com a probabilidade de ocorrência do efeito adverso, o qual depende diretamente das condições de exposição. Portanto risco = dose x exposição. Assim o papel do toxicologista é encontrar um balanço entre os dois termos dessa equação de forma que o risco seja aceitável (FAUSTMAN; OMENN, 2001). A avaliação de risco é definida como o processo que permite a caracterização quantitativa ou qualitativa e previsão/estimativa de efeitos adversos potenciais à saúde de determinada população, sistema ou organismo decorrentes da exposição a perigos de distintas naturezas (FERNANDES-NETO; SARCINELLI, 2009). Esse processo tem caráter preventivo e frequentemente culmina na derivação de níveis seguros de exposição para a população em geral (VAN LEEUWEN, 2000).

Nesse contexto é importante considerar também que a exposição a um composto ou substância pode se dar por mais de uma via tais como oral, inalatória ou dérmica; e ela pode variar quanto à duração e freqüência. Chamamos de dose interna a quantidade do toxicante que efetivamente ingressa no organismo por uma ou mais vias. E, além disso, os indivíduos de uma mesma espécie têm suscetibilidades diferentes, ou seja, reagem diferentemente quando expostos a mesma dose (PLEIL et al., 2007).

Particularmente a Toxicologia regulatória ambiental estuda e ajuda a estabelecer valores de concentrações máximas permitidas (VMP) para a presença de agentes químicos na água, no solo e no ar, por meio dos princípios e abordagens da avaliação de risco. Para isso, é necessário estabelecer cenários genéricos de exposição de forma a proteger sempre as espécies mais sensíveis de cada ambiente. Assim o risco ambiental de determinada substância é o resultado do julgamento de sua periculosidade em função da exposição. A periculosidade está associada às potencialidades intrínsecas dos compostos químicos, como por exemplo, a toxicidade aguda e crônica, degradação, bioacumulação entre outras, enquanto a exposição está associada às condições de uso e distribuição no ambiente (concentração ou dose). Muitos compostos, especialmente os praguicidas são classificados quanto a sua periculosidade. No Brasil havia uma classificação, que foi muito utilizada no passado, baseada exclusivamente na toxicidade do produto ao ser humano. Mais recentemente foi desenvolvida uma classificação mais abrangente que considera também o destino do praguicida no ambiente, bem como seus possíveis efeitos sobre a biota em geral, incluindo o ser humano. Essa classificação, denominada Potencial de Periculosidade Ambiental (PPA) é bastante útil, e serve para nortear decisões, porém deve-se ter em mente que a mesma não é fundamentada em avaliação de risco, pois não inclui a avaliação de exposição (ZAGATO, 2006).

Critérios e padrões de qualidade de água e as normas legais brasileiras

Os critérios de qualidade ambiental devem ser definidos para cada um dos meios como ar, água e solo e são baseados nos dados toxicológicos obtidos através de experimentos, estudos epidemiológicos e cenários genéricos de exposição, ou seja, são produtos do processo de avaliação de risco. As informações toxicológicas, sobre um composto químico, mais utilizadas em estudos de avaliação de risco são: dados de toxicidade aguda, de toxicidade crônica, de genotoxicidade, de efeitos à reprodução e/ou teratogenicidade, de ecotoxicidade, sobre a sua capacidade de fotodegradação, de hidrólise, de biodegradação e ainda sobre o seu transporte e distribuição nos diferentes compartimentos ambientais. Porém, para grande parte dos compostos produzidos ou utilizados em grande escala no Brasil, estes dados estão indisponíveis ou parcialmente disponíveis (SANCHEZ; NASCIMENTO, 2005).

Já os padrões de qualidade ambiental levam em consideração, além dos critérios cientificamente estabelecidos, a disponibilidade de métodos analíticos, de tecnologia de tratamento para remoção dos toxicantes aos níveis desejados, fatores políticos, econômicos e sociais do país, que são definidos através de processos denominados gerenciamento do risco (USEPA, 1991). Na prática, o que será exigido pelas autoridades competentes serão os padrões. Já nos processo de gestão dos recursos ambientais e estabelecimento de metas de qualidade os critérios são mais utilizados (BERTOLETTI; ZAGATTO, 2006).

Critérios de qualidade de água são os valores máximos permitidos, para cada substância química possivelmente presente na água, que garantem os seus usos pretendidos. Os critérios de qualidade de água devem ser estabelecidos em função cada um dos seus usos. Para definição desses critérios são necessários dados oriundos dos estudos toxicológicos, anteriormente citados, bem como o estabelecimento de cenários de exposição apropriados. Exemplos de usos para os quais têm sido definidos critérios de qualidade: consumo humano, irrigação, dessedentação de animais, recreação, proteção da vida aquática e aqüicultura.

Historicamente, Estados Unidos (1991), Canadá (2007), Austrália (2004) e diversos países europeus derivam seus critérios de qualidade ambiental com base em estudos próprios através de órgãos governamentais que possuem essa competência. Mais recentemente, a Argentina (2005), através da sua Secretaria de Recursos Hídricos, mantém um grupo de trabalho que deriva critérios de qualidade de água em âmbito regional. Entidades internacionais como a OMS (1997) e a FAO – Food and Agricultural Organization (1985) derivam critérios de qualidade ambiental com o objetivo de orientar os diferentes países, especialmente aqueles que não têm recursos para realizar seus próprios estudos, facilitando o estabelecimento de padrões de qualidade de para os diferentes usos do recurso hídrico.

No Brasil, existem diferentes normas legais que utilizam critérios de qualidade de água. A Portaria 518 do Ministério da Saúde, publicada em 2004 é uma norma que define padrões para substâncias químicas para um dos principais usos da água: consumo humano (BRASIL, 2004). Ainda em relação ao consumo humano, especificamente para águas envasadas e gelo, que no Brasil são consideradas alimento, em 2005, foi publicada a Resolução RDC 274 da ANVISA (BRASIL, 2005b). Os limites máximos permitidos (VMP) para substâncias químicas dessa resolução estão agora harmonizados com a Portaria 518 do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004). Para recreação, em 2000, foi publicada a resolução CONAMA N° 274 de 2000, a qual inclui basicamente parâmetros microbiológicos não especificando padrões numéricos para substâncias químicas tóxicas (BRASIL, 2000).

Não há norma nacional que estabeleça separadamente padrões de qualidade para proteção da vida aquática, irrigação e dessedentação de animais para águas superficiais. A Resolução CONAMA N° 357 de 2005 (BRASIL, 2005a) estabelece valores máximos permitidos para conjunto de usos, de acordo com classes de água utilizadas para o enquadramento dos recursos hídricos. Essa resolução define padrões de qualidade de acordo com as 13 classes de qualidade elaborados em função de conjuntos de uso concomitantes. Por exemplo, águas doces que atendem os padrões da classe 1 podem ser utilizadas com segurança para consumo humano após tratamento simplificado, recreação de contato primário e secundário, dessedentação de animais, irrigação, preservação da vida aquática e aqüicultura. Os usos previstos para as águas doces de classe 3 são: consumo humano após tratamento convencional e avançado, recreação de contato secundário, dessedentação de animais e irrigação. De acordo com essa resolução podemos afirmar que uma água que atende padrões de classe 1 pode ser utilizada com segurança para irrigação, porém os requisitos de qualidade da classe 1 podem não coincidir com os critérios de qualidade de água exigidos para esse uso específico. Isto porque os padrões de cada classe são escolhidos de forma a contemplar o valor mais restritivo entre todos os usos considerados (CARVALHO, 2007; CAMPOS, 2006; CAMPOS et al., 2008).

No que se refere a águas subterrâneas a recém publicada Resolução CONAMA N° 396 de 2008, também define classes de qualidade com base em usos. São cinco classes de qualidade cujos padrões devem ser estabelecidos caso a caso, de acordo com o planejamento do uso atual e futuro do recurso hídrico e das características biogeoquímicas. Essa resolução apresenta uma lista de substâncias mais prováveis de serem encontradas em águas subterrâneas bem como apresenta padrões individuais para usos considerados preponderantes: consumo humano, dessedentação de animais, irrigação e recreação (BRASIL, 2008). Esses padrões independem da origem do recurso hídrico e podem ser aplicados para diferentes tipos de água. Também, de forma pioneira no Brasil, esta norma lista os limites de quantificação praticáveis (LQP) aceitos para cada uma das substâncias químicas apresentadas. Neste caso para efeitos legais, se o padrão de qualidade de água for menor que o LQP este último será o valor aplicável.

O cálculo dos critérios de qualidade de água

Os agentes químicos para os quais se estabelecem critérios de qualidade de água são aqueles que têm probabilidade de ocorrência no país ou região e são capazes de causar efeitos adversos ou desconforto aos seres vivos. Esses agentes podem estar presentes na água devido a características geológicas (naturais) ou por de fontes de contaminação antropogénicas. No caso especifico da água para abastecimento público o valor máximo permitido (VMP) pode ser definido como o nível máximo de um contaminante presente na água destinada a consumo humano. Seu valor deve ser definido para os compostos químicos que pode causar efeitos adversos após longos períodos de exposição ou aqueles que possam causar, sob determinadas condições, seus efeitos após uma única exposição. Deve ser determinado também para substâncias que podem tornar a água não potável por alterar o seu sabor, odor ou cor. O VMP normalmente representa a concentração de um componente que não resultará em um risco significativo para a saúde, considerando o consumo ao longo da vida. Esses valores também podem ser estabelecidos em função da capacidade prática de tratamento ou na capacidade analítica. Nestes casos, o VMP pode ser superior ao valor calculado com base no critério saúde humana.

A derivação desses VMP depende do dado toxicológico a ser adotado pelo país ou estado chamado de Ingresso Diário Tolerável (TDI) ou Dose de Referência (RfD), dos valores escolhidos para as diferentes variáveis do cenário de exposição, como peso corpóreo da espécie, consumo de água, porcentagem de ingresso do composto via água, fatores de incerteza aplicados entre outros. Também é necessário considerar a viabilidade técnica e econômica de se quantificar o composto bem como de removê-lo aos níveis desejados. O valor obtido e as conseqüências de sua aplicação devem ser analisados pelos gestores públicos e nesse contexto pode ser alterado considerando o custo-benefício do ponto de vista estratégico de cada país ou estado (VAN LEUWEEN, 2000).

A informação sobre a toxicidade de cada substância química – expressa normalmente em NOAEL (nível de efeito adverso não observado) ou LOAEL (menor nível onde se observa efeito adverso) – é obtida através de experimentos com animais e dados epidemiológicos. Esses dados são obtidos para cada espécie-teste (mamíferos, plantas, microrganismos entre outros). A esses dados aplica-se o que chamamos de fatores de incerteza os quais são escolhidos em função da qualidade dos dados toxicológicos disponíveis e variabilidade da resposta inter e intra-espécie, entre outros fatores (FALK-FILIPSSON et al., 2007). Usualmente, para se obter o TDI ou RfD, divide-se o NOAEL ou LOAEL por fatores que podem variar de 10 a maiores que 1000. Esses valores são definidos caso a caso e requerem o julgamento científico de um grupo de especialistas.

Os critérios de qualidade de água ou valores máximos permitidos (VMP) de um agente químico são geralmente calculados multiplicando-se a TDI pelo peso corpóreo considerado e pela fração ou porcentagem da TDI associada à água, divididos pelo consumo de água diário adotado. Por exemplo, para um determinado composto X, que apresenta uma TDI de 0,1 mg/Kg, o VMP para consumo humano poderia ser assim calculado:

VMP = 0,1 (TDI) x 60 (peso corporal) x 0,1 (fração de ingestão)/2L (consumo diário de água)

VMP para composto X= 0,3 mg/L

Isso significa que uma pessoa pode beber água contendo 0,3 mg/L do composto X, por toda a vida, sem sofrer efeito adverso, à luz dos conhecimentos da época em que o valor foi derivado. Observa-se que esse valor pode variar de acordo com as condições consideradas e com a TDI adotada. Assim sendo, as agências reguladoras de cada país poderão adotar diferentes critérios de qualidade de água para a mesma substância (tabela 1). As diferenças entre os valores dos Estados Unidos, Brasil e Canadá podem ser explicadas pelos diferentes TDI e cenários de exposição adotados. Já o valor adotado pela Austrália, refere-se à política do país, que para praguicidas, não utiliza o critério de qualidade cientificamente calculado, mas sim recomenda o LQP da substância como o limite máximo. A tabela 2 apresenta os diferentes cenários de exposição considerados por alguns países, os quais são fontes de variação na derivação dos critérios de qualidade de água (tabela 2).


Para a proteção da vida aquática em vez de utilizar-se doses de RfD ou TDI como dados de referência para o cálculo dos critérios de qualidade da água, utiliza-se o conceito de concentração máxima tolerável. Isto porque, neste caso, os organismos vivem toda sua vida na água, e as avaliações toxicológicas são realizadas nesse meio. Um método que vem sendo utilizado é o das oito famílias, que se baseia na utilização de dados de toxicidade correspondente a pelo menos oito famílias diferentes de animais, e uma de algas ou plantas vasculares. Dependendo das características da substância química, pode-se utilizar pelo menos oito famílias de algas ou plantas vasculares aquáticas e uma de animais. A escolha das espécies a serem consideradas deve estar relacionada ao país ou região (ARGENTINA, 2005).

No caso dos critérios para dessedentação de animais, o mesmo composto X, terá outro VMP, pois uma ovelha, por exemplo, pesa em média 120 quilos e consome por dia 15 L de água/dia e pode ser mais ou menos sensível que o homem para a substância considerada, tendo seu TDI específico (ARGENTINA, 2005). Para a irrigação, o valor pode diferir ainda mais, pois ele dependerá do NOAEL derivado de dados relativos a efeitos fitotóxicos (normalmente expresso em mg do composto/kg de solo), densidade e volume do solo considerado e da taxa de irrigação anual. Um exemplo bastante interessante é o herbicida glifosato. Na Argentina, o VMP deste composto para consumo humano é de 300 μg/L. Para proteção da vida aquática o valor derivado foi de 240 μg/L. Para irrigação, o valor é mais baixo, podendo chegar até a 0,04 μg/L dependendo da taxa de irrigação considerada, critério esse derivado em função da espécie de planta mais sensível, considerada como de importância para o país (ARGENTINA, 2005).

Percebe-se, então, que os critérios de qualidade de água variam em função do uso e devem ser derivados de forma regional, com base na relevância de cada agente químico, das espécies a serem protegidas e dos cenários de exposição escolhidos. Muitas vezes, devido à falta de informações toxicológicas sobre um determinado composto, não é possível avaliar o risco que os seres humanos ou biota estão sujeitos, mesmo que haja exposição. Além disso, em função da constante evolução científica, novos efeitos adversos de uma mesma substância são descobertos, mais testes de toxicidade são executados e novas evidências epidemiológicas são publicadas, o que faz com que os TDI e conseqüentemente os critérios sejam revistos sempre.

O estabelecimento dos padrões e as questões legais

Observa-se que, cada um dos usos da água tem seus critérios de qualidade específicos, os quais devem ser derivados utilizando métodos padronizados e definidos de acordo com a necessidade de cada região ou país. Não se espera, portanto que as mesmas substâncias estejam presentes nas legislações de todos os países, pois a escolha depende da ocorrência natural, quantidade em uso e importância social e econômica. Quanto mais dados toxicológicos forem gerados sobre uma determinada substância, menores serão os fatores de incerteza e, portanto mais preciso será o critério de qualidade, garantindo assim os usos da água com segurança.

Percebe-se que esta é uma área que requer ainda pesquisas no Brasil. Muito há que ser feito, discutido e harmonizado. Para todos os usos da água será necessário definir protocolos padronizados de forma integrada entre as agências reguladoras envolvidas. Recentemente Campos et al. (2008) apresentaram as dificuldades para definição de critérios de qualidade de água para irrigação. Para a proteção da vida aquática, ainda há uma lacuna em termos de derivação de critérios nacionais que se reflete na falta de valores máximos permitidos individuais nas normas pesquisadas.
Fica evidente que o estabelecimento de padrões de qualidade requer, além de toxicologistas, especialistas de diferentes áreas do conhecimento, tanto capazes de avaliar o risco como de gerenciá-lo de forma adequada. Além disso, as normas devem estar preparadas para serem periodicamente atualizadas, pois os critérios de qualidade de água são, por definição, dinâmicos.

Importante considerar que enquanto os efeitos adversos de um determinado composto ou mistura não forem estudados e seu modo de ação conhecidos, não é possível calcular os riscos da exposição, devendo-se, portanto reduzir a exposição dos organismos ao máximo até que doses seguras possam ser estabelecidas. Como a capacidade de produção de substâncias novas é muito maior do que a capacidade de realização de avaliação da toxicidade das mesmas, muitas vezes as agências reguladoras deparam-se com a necessidade de regulamentar substâncias para as quais não se dispõe de qualquer dado toxicológico. Nesse sentido a Alemanha, com base em estudos científicos e o princípio da precaução, utilizam o valor provisório de 0,1 μg/L como padrão de potabilidade enquanto dados científicos suficientes sobre a substância não estão disponíveis (GRUMMT et al., 2007).

Na verdade, o que se reconhece, é que diante de novos riscos à saúde humana ou a biota em geral, as agências reguladoras, apoiadas pelas autoridades ambientais, deveriam criar procedimentos de avaliação que, além de dimensionar o risco, propusessem recomendações para sua redução, sempre que possível, ao nível seguro de exposição das populações que se quer proteger. Quando não se tem capacidade de monitorar, avaliar ou garantir o atendimento de um determinado padrão ou critério, a opção pragmática que resta aos órgãos reguladores é a eliminação da exposição, com base na equação risco = dose x exposição.

Por todos esses motivos, a legislação deve, a exemplo de outras áreas do direito ambiental, estar pautada pela evolução do conhecimento técnico-científico e ser suficientemente dinâmica para acompanhar tal evolução e assim garantir a proteção dos organismos que utilizam a água e a adequada gestão dos recursos hídricos, garantindo a qualidade ambiental e a saúde das gerações atuais e futuras.


REFERÊNCIAS

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