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Incêndio em boate na cidade de Santa Maria (RS) na madrugada do dia 27 de janeiro provoca discussões sobre a qualidade dos projetos e deficiências na fiscalização dos procedimentos de segurança contra incêndio em edificações |
A prefeitura de Santa Maria (RS) entregou à Polícia Civil nesta terça-feira (29), a documentação da boate Kiss, onde um incêndio matou mais de 230 pessoas na madrugada do último domingo (27). Os documentos devem comprovar se havia irregularidades na edificação e nos procedimentos de segurança contra incêndio. Segundo um dos sócios da boate, o alvará de plano de incêndio estava vencido desde agosto do ano passado.
De acordo com relatos, o incêndio aconteceu a partir do uso de um equipamento pirotécnico por um integrante da banda que se apresentava no local. Fagulhas atingiram o forro, que era inflamável, propagando o fogo e gerando muita fumaça. Extintores também não funcionaram. Outros fatores teriam contribuído para o agravamento do acidente, como sinalização inadequada das rotas de fuga, falta de treinamento dos funcionários para lidar com emergências, bloqueios da saída principal por seguranças da casa noturna, além da superlotação. Segundo o Corpo de Bombeiros, a capacidade do local era de pouco mais de 600 pessoas, mas cerca de mil estavam na boate na hora do acidente.
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Interior da boate Kiss após o incêndio |
O incêndio causou grande comoção pelo número de mortes registrado, porém, não é um caso incomum. No Brasil ocorrem, em média, 200 mil incêndios por ano. Somente em São Paulo são 60 mil, segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT). Os dados foram compilados junto aos corpos de bombeiros e à Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e fazem parte de uma documentação que o IPT prepara para o Governo Federal denominada "Brasil Sem Chamas". Uma das propostas do documento é a criação de um código nacional de segurança contra incêndio. "Não temos um código que amarre todas as informações, seria importante homogeneizar", afirma José Carlos Tomina, pesquisador na área de segurança contra incêndio do IPT e superintendente do comitê brasileiro de segurança contra o incêndio na Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). "Os profissionais sabem as dificuldades de projetos em regiões diferentes, em função de regras distintas", exemplifica.
Projetos
Em geral, os projetos devem atender ao decreto do corpo de bombeiros estadual, além de regulamentações estaduais e/ou municipais específicas. Os requisitos são adequados a tipos de edificações por ocupação, situação de risco, porte e atividades realizadas.
Além dos equipamentos de segurança, um dos principais problemas apontados por especialistas é a falta de cuidados com o uso de materiais e mobiliários que evitem, ou pelo menos diminuam, a velocidade da propagação das chamas. "Temos 64 normas de incêndio, mas só o cumprimento à norma NBR 9.077 - saídas de emergência em situações de incêndio já teria sido suficiente para as pessoas na boate escaparem com segurança, com saídas bem distribuídas, sem os materiais combustíveis no interior", exemplifica Tomina.
Segundo o pesquisador do IPT, as normas existentes atendem aos requisitos necessários de segurança. Ele ressalta, no entanto, a necessidade de vistorias rigorosas e interdição quando os locais não cumprirem com os requisitos exigidos. "Incêndios acontecem por conta de alguma ação indevida. Não é uma fatalidade, sempre alguém comete algum erro. Faltou trabalhar na prevenção", afirma.
Para o perito Tito Lívio Ferreira Gomide, do escritório do Gabinete de Perícias Gomide e membro titular do Instituto de Engenharia, um único profissional deveria ser responsável pela segurança, manutenção e uso da edificação. Segundo ele, um engenheiro ou arquiteto especializado em edificações deveria fiscalizar os serviços de manutenção e também as providências técnico-administrativas da edificação, em atendimento às normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e com o recolhimento da Anotação de Responsabilidade Técnica (ART).
Segurança contra Incêndio
O Corpo de Bombeiros de São Paulo, com base no decreto nº 56.819 de 10 de março de 2011, recomenda a implementação de uma série de medidas de segurança em edificações e áreas de risco, de acordo com a ocupação, altura e carga de incêndio. A seguir, confira os itens de segurança recomendados, bem como tabelas com instruções de segurança para edificações com ocupação similar à da boate Kiss.
Medidas de segurança
Acesso de viatura na edificação e áreas de risco
Separação entre edificações
Resistência ao fogo dos elementos de construção
Compartimentação
Controle de materiais de acabamento
Saídas de emergência
Elevador de emergência
Controle de fumaça
Gerenciamento de risco de incêndio
Brigada de incêndio
Brigada profissional
Iluminação de emergência
Detecção automática de incêndio
Alarme de incêndio
Sinalização de emergência
Extintores
Hidrante e mangotinhos
Chuveiros automáticos
Resfriamento
Espuma
Sistema fixo de gases limpos e dióxido de carbono (CO2)
Sistema de proteção contra descargas atmosféricas (SPDA)
Controle de fontes de ignição (sistema elétrico; soldas; chamas; aquecedores etc.).
Classificação das edificações e áreas de risco quanto à ocupação
Classificação das edificações quanto à altura
Classificação das edificações e áreas de risco quanto à carga de incêndio
Edificações de Divisão F-5, F-6 e F-8 com área superior a 750 m² ou altura superior a 12 m
Leia, a seguir, nota oficial do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas em Desastres (Ceped/RS - UFRGS) e Associação luso-brasileira para segurança contra incêndio (Albrasci) sobre o desastre associado ao incêndio da boate Kiss em Santa Maria, Rio Grande do Sul:
"Infelizmente vivenciou-se no Rio Grande do Sul, Brasil, em 27/01/2013, um dia que irá ficar tristemente marcado no nosso calendário, uma enorme tragédia, que traumatiza toda a sociedade gaúcha e brasileira.
O incêndio ocorrido na boate Kiss, em Santa Maria, cidade situada a cerca de 260 km de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, durante uma festa de jovens universitários, acarretou um grande número de mortes, estimado inicialmente em 232, com chances de incremento.
Neste momento nossos corações se voltam entristecidos para os familiares, abalados pela perda de tantos jovens com diversos projetos de vida para o desenvolvimento do país. Para honrar a memória dessas vítimas é fundamental que essa tragédia mobilize toda a estrutura
pública e a comunidade técnica para que entendamos bem o que aconteceu e tiremos lições que mudem o panorama e evitem novas tragédias.
Os primeiros relatos de sobreviventes e testemunhas indicam que uma série de fatores (como ocorre em todas as tragédias, as causas contribuintes acabam sendo múltiplas) parece ter colaborado, em dada medida, para que esse desastre se consubstanciasse: o uso indevido de
elementos inflamáveis (sinalizador) em espaços confinados; o subdimensionamento e a sinalização inadequada das rotas de evacuação; o despreparo e falta de treinamento para lidar com emergências dos funcionários; bloqueios da saída por seguranças e material; problemas
de funcionamento de extintores e o uso de materiais de revestimento inflamáveis, que propagam o fogo e geram muita fumaça.
São necessárias ações que busquem entender o que aconteceu e verificar qual a contribuição de cada um desses fatores e de outros que possam ser identificados. É fundamental aprender para evitar que algo desse gênero se repita.
É notório, porém, que, de certa forma, essa acaba sendo uma tragédia anunciada. Há algum tempo os especialistas da área de incêndio, inclusive componentes do Corpo de Bombeiros, vem discutindo os perigos existentes e a necessidade de se avançar em vários aspectos ligados à prevenção de incêndios.
A verdade é que nossa sociedade não tem uma adequada percepção dos riscos associados ao uso seguro das edificações. Observam-se, na mídia brasileira, diversos casos de estoques inadequados e ilegais de gás ou outros materiais inflamáveis e explosivos; falta de controle sobre fogos de artifício; sobrecarga de redes elétricas; uso de materiais com propriedades
inadequadas em móveis e revestimentos; ausência de manutenção, subdimensionamento ou obsolescência dos sistemas de combate a incêndio; níveis inadequados de capacitação e atualização específicos dos profissionais envolvidos nos projetos e na fiscalização. Isso gera um
estado de risco potencial grave, mas que não é percebido.
No Brasil, há boas normas técnicas e regulamentos de Corpos de Bombeiros detalhados em vários estados brasileiros. É preciso conhecê-los e respeitá-los. Existe, no entanto, uma clara necessidade de criar na Sociedade Brasileira uma cultura da segurança contra incêndio a fim
de exigir o cumprimento dos requisitos legais.
Há necessidade de ampliarmos o número de especialistas em segurança contra incêndio por meio de disciplinas regulares nos cursos de engenharia e arquitetura nas universidades brasileiras.
Há necessidade de uniformizar a regulamentação de segurança contra incêndio em todos os Estados brasileiros, tomando como base as melhores técnicas.
Há necessidade de criação de centros científicos de referência em todas as regiões do Brasil, para a produção do conhecimento específico necessário e para dar suporte à certificação dos materiais e equipamentos de segurança contra incêndio.
Há necessidade de ampliar ou modernizar as normas técnicas sobre segurança contra incêndio, assim como são necessárias ações continuadas de atualização e capacitação técnicocientífico, e estratégias de conscientização da sociedade e das autoridades públicas de que o risco de incêndio é permanente e evolui com a tecnologia...
Todos devemos ser responsáveis por condutas seguras e preventivas, sendo especialistas na área ou não.
Afinal, é doutrina da área que um incêndio só ocorre porque a prevenção falhou...
O alerta de que é necessário atentar para a Segurança contra Incêndio não é novo...
Lembremos dos incêndios do Andraus e do Joelma, na década de 70, em São Paulo e das Lojas Renner, em 1976, no próprio Rio Grande do Sul. Desde então muito foi feito, mas ainda é necessário fazer mais...
A gestão da segurança contra incêndio e pânico necessita de subsídios técnicos e científicos para a sua melhoria contínua, para que evitem infortúnios dessa natureza.
Esta é uma hora de pesar para toda a sociedade brasileira, e a maior homenagem que podemos fazer à memória das vítimas é atuar fortemente para reduzir significativamente as oportunidades de que novos desastres desse tipo possam acontecer..."
Porto Alegre, 27 de janeiro de 2013
Prof. Dr. Luiz Carlos Pinto da Silva Filho, UFRGS, Ceped/RS, Albrasci
Prof. Dr. João Paulo Rodrigues, Univ. Coimbra, Presidente Albrasci
Prof. Dr. Valdir Pignatta e Silva, USP, Albrasci