quarta-feira, 18 de maio de 2011

Passeio ao zoológico: sob outra ótica, sob outra ética

Passeio ao zoológico: sob outra ótica, sob outra ética

08 de março de 2011

fonte: http://www.anda.jor.br/2011/03/08/passeio-ao-zoologico-sob-outra-etica/

“Quando se trata de como os humanos exploram os animais, o reconhecimento de seus direitos requer abolição, não reforma (…)
verdade dos direitos animais requer jaulas vazias, não mais espaçosas”.
(Tom Regan, Jaulas Vazias)




Como bióloga e educadora, sempre acreditei nos zoológicos como ferramenta deseducativa.
Meu repúdio a esse tipo de atividade fez com que eu me afastasse, durante anos, de uma visita a esses verdadeiros redutos de infelicidade animal. Tive a oportunidade de fazer uma visita técnica a alguns desses redutos recentemente (há menos de uma semana, para ser mais exata). Assim como a aquários, oceanários, serpentários e afins. Foi um tour dos horrores, considerando toda minha aversão a qualquer forma de confinamento animal para a satisfação de egos humanos.
Mas, com o passar do tempo, minha aversão, que antes era representada pela negação, foi substituída pela coragem de encarar os fatos como eles são: os animais sofrem. Ao nosso lado. Todos os dias. E nos fazem, a todo o tempo, um apelo silencioso. Não é possível ignorar essa realidade pelos melindres de não querer sofrer, de não querer olhar.  O sofrimento deles é infinitamente maior.
Nessa visita técnica, foram incluídos locais aos quais os visitantes “comuns” não têm acesso, como cozinhas, biotérios, áreas de cuidados veterinários etc. Fui convidada por uma colega de trabalho a conduzir com ela (que também não é fã de zoológicos) a visita (sou professora universitária) e temos uma turma em comum, a qual nos acompanhou. A curiosidade de saber a quantas anda a exploração legitimada dos animais que tiveram sua liberdade sequestrada, na prática foi um dos fatores que me levou a decidir ir.
Outro fator importante foi a certeza de ter minhas concepções biocêntricas renovadas. Mesmo à custa do meu sofrimento. Banal, como já mencionei, perto do sofrimento de inúmeros animais que lá encontrei.  Antes de “ver” os animais e durante as “visitas”, em todos os locais, há uma explanação teórica/logística por parte dos monitores. Parece que são treinados todos no mesmo lugar, pois as frases feitas a respeito do bem-estarismo animal são quase idênticas. Tais explanações me remetiam inevitavelmente ao Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Pensava: as pessoas estão mesmo acreditando nisso? (Acho que vou escrever um Ensaio sobre a surdez). Outro pensamento recorrente: na ocasião de uma palestra do Seminário da Agenda 21, no Paraná, em 2009, a filósofa Sônia Felipe mencionou a seguinte frase: “bicho não é vitrine de shopping”. Considerei extremamente relevante. Me fez pensar além.
Zoológicos com objetivos de recuperação e reintrodução de espécies no meio, sem exposição ao público, que respeitam o que o animal nasceu, de fato, para ser, merecem nosso reconhecimento. Não são, infelizmente a maioria deles. A maioria ainda se baseia em concepções especistas e antropocêntricas para justificar sua existência e consequente sofrimento animal. Algumas falácias são facilmente identificadas no discurso daqueles que defendem o zoológico “vitrine” como “ferramenta educativa”. Aliás, podemos, sim, fazer dos zoológicos, ferramentas extremamente educativas se mudarmos a análise e a perspectiva. Analisando sob a ótica da ética biocêntrica, podemos enumerar algumas falácias que são repetidas como mantras a respeito dos animais confinados. Vamos a algumas delas:
- “O Zoológico é importante porque nós devemos conhecer as espécies para preservar/respeitar”.
Essa concepção traz embutida a desculpa de que só é possível preservar uma espécie a partir do momento em que a conhecemos. Se a concepção biocêntrica predomina, o simples fato de o animal existir já é um pressuposto que justificaria o respeito por ele. E só. Eu não conheço nenhum africano, por exemplo, mas não preciso fazê-lo para só depois respeitá-lo. Nunca conheci um urso-polar, um tigre de bengala, uma perereca amazônica ou uma orca. Mas o fato de não vê-los ao vivo não me impede de respeitá-los pela sua essência.
- “O Zoológico é imprescindível para estudarmos o comportamento dos animais”.
Só se for para estudar neuroses de cativeiro. Qualquer pessoa com noções básicas de biologia sabe que o comportamento de animais em cativeiro não é o mesmo que o animal apresentaria no seu meio natural. Tenho muito respeito por estudos comportamentais. Mas por aqueles que são feitos no habitat natural do animal. Esse argumento não sustenta a existência desse tipo de zoológico.
- “O Zoológico é importante para a reprodução e para salvar as espécies”.
Primeiro: a maioria dos animais reproduzidos em cativeiro é reproduzida para esse fim: permanecer em cativeiro. Não para ter devolvido o que lhe foi negado desde as gerações anteriores: sua liberdade. Há, entre os zoológicos, uma espécie de escambo de espécies, onde os animais são intercambiados. Faltou uma girafa no zoológico “x”? Já está nascendo uma no Zoológico “y”. Será separada de sua mãe e destinada ao zoológico “x” como animal de exposição. Segundo: privado da convivência com seus iguais e de todas as interações que lhe são possíveis em seu meio natural, ele não é mais do que a sombra dos seus ancestrais.
- “Mas os animais que nasceram no zoo não sofrem porque não conhecem outra vida”.
Será que o fato de esse animal ter nascido em cativeiro nos dá o direito de usurpar sua liberdade mais uma vez e condená-lo a uma vida miserável, privando-o da sua verdadeira liberdade?
Se houver uma “visita ao zoológico”, com propósitos educativos, que sejam feitas pelo menos as seguintes perguntas e investigações com os alunos: qual o habitat natural desses animais? Quais os hábitos desses animais em seu meio natural? Geralmente são: nadar, correr, voar quilômetros por dia, procurar comida, defender seu território, interagir com outras espécies e com seus iguais. E em cativeiro? Quais as mudanças percebidas? Quais os impactos nefastos nos seus hábitos? Quais as consequências? Um pequeníssimo exemplo, entre tantos que presenciei: um leão-marinho em seu habitat natural viaja centenas de quilômetros por dia. Em cativeiro, é condenado a viver em um pequeno tanque, onde passa o dia circunscrevendo voltas como que para escapar da escravidão sem fim. Sem falar na obesidade e outros transtornos de comportamento como as já mencionadas neuroses de cativeiro. Isso nos reporta à falácia seguinte:
- “Aqui no zoológico fazemos o enriquecimento ambiental”.
Esse novo modismo nos zoos (proveniente de um modelo americano) traz em sua proposta a introdução de diferentes estímulos no cativeiro para que animais não desenvolvam comportamentos repetitivos e neuróticos como automutilação, coprofagia etc. Certamente, estímulos são melhores que a estagnação a que esses animais são condenados. Mas deve-se sempre questionar: a reabilitação e a devolução da liberdade que lhes foi negada não seria infinitamente melhor? O tão prestigiado enriquecimento ambiental não seria mais um engodo para justificar a perpetuação do cativeiro e de interesses escusos?
- “Hoje não existem mais jaulas nos zoológicos”.
Ouvi diversas vezes essa frase dos monitores que nos acompanharam. Em vários lugares. Basta uma breve visita para, novamente, a perplexidade ao comparar o dito e o constatado ser inevitável. O ápice do menosprezo à inteligência dos presentes. Percebe-se, claramente a existência de cercados mínimos de aço, alumínio, terrários, aquários e paredes de vidro fazendo as vezes de jaulas. Mas pergunto: não seria infinitamente melhor que jaulas, aquários, terrários e afins estejam para sempre, vazios?
- “A alimentação é balanceada”.
Isso pode soar muito bem aos ouvidos antropo e ecocêntricos. Mas nos ouvidos biocêntricos e abolicionistas dói. Até fisicamente. Uma frase que ouvi da monitora: “Os zootecnistas que trabalham no zoo e cuidam da alimentação dos animais acham que os psitacídeos silvestres são uns chatos porque são muito exigentes, não comem qualquer coisa”. Ora, o que diriam os psitacídeos se falassem? “Chato” seria um adjetivo no mínimo elegante para qualificar quem os trancafia em um viveiro, obrigando-os a uma “loteria gastronômica”, forçada e diferente de sua alimentação natural.
E nem tecerei aqui comentários a respeito do estresse gerado para o animal decorrente das barulhentas “visitas”. É desnecessário.
Os animais em zoológicos são a ponta do iceberg dessa empresa. Por trás há inúmeros fatores que formam uma cadeia de horrores para outras espécies também. Uma delas é a existência de biotérios, terceirizados ou dentro dos próprios zoos, que são lugares específicos onde são criados animais vivos para alimentar os animais cativos. No Brasil são criados, para esse fim, ratos, porquinhos-da-índia, gansos, pintinhos etc.
Esses seres vivos, considerados “alimento” no contexto, são manipulados, criados e administrados com a naturalidade de quem dá uma banana a um macaco. São “coisas” como regem os preceitos do antropocentrismo e do especismo. Os ecocêntricos dirão que é muito boa essa preocupação com a alimentação dos animais. E que não há dilemas morais, pois na natureza existe a relação predador/presa. Sim. NA NATUREZA. Mas, novamente a pergunta que se deve fazer é: Não existir animais enjaulados não seria infinitamente melhor?
Outro fenômeno que ocorre na maioria dos zoológicos e, confesso, para mim é novidade: a distinção entre “animais em exposição” e “animais excedentes”. Os animais em exposição (no contexto, como se fossem agora, peças de uma galeria de arte) são aqueles que o público enxerga. Aliás, a maioria deles é recolhida à noite, gerando mais estresse. Os “animais em exposição” ficam nas partes divulgáveis do zoo.
Nas áreas que estão longe dos olhos do público, existem pequenas jaulas com os “animais excedentes”, ou seja, os que sobraram da reprodução em cativeiro, ou de trocas com outros zoológicos. Ou até mesmo os animais doentes ou que desenvolveram a (novamente ela) neurose de cativeiro. Claro que não é conveniente que o público tenha contato com comportamentos como automutilações, coprofagia, canibalismo e outros desenvolvidos em animais privados de sua liberdade. A visão desses comportamentos pode começar a atenuar a “cegueira conveniente” do grande público. Não é recomendável.
Nessas áreas, até são permitidas visitas técnicas. Mas são terminantemente proibidas fotos e filmagens, por razões óbvias aos olhos da ética biocêntrica. Uma das monitoras, quando questionada sobre o porquê de as fotos serem proibidas, disse não saber. Fiquei me questionando se a resposta foi estratégica, se foi repetida como mantra, se ela simplesmente não se importa, ou se a cegueira a acomete também. Nas áreas dos “animais excedentes”, foi possível observar em vários zoológicos que o espaço em que os animais estão confinados é bem menor que o dos animais “em exposição”. Logo nos perguntamos: o que dizer da preocupação com o “bem-estar animal”, ou com “enriquecimento ambiental” para os animais dessas áreas? Também não obtive respostas convincentes. Só evasivas. Não insisti mais porque as respostas ficaram óbvias demais.
Na esteira dos zoológicos, seguem aquários, serpentários, oceanários, circos, projetos de “preservação” etc. que, pela tradição antropocêntrica, possuem um propósito educativo “inquestionável”. Mas basta um breve passeio, com esse olhar biocêntrico, diferente do que nos foi imposto a acreditar a vida toda, para que o apelo silencioso e profundo de cada animal se faça presente e toque fundo nossa alma toda vez que visitarmos um zoológico ou algo semelhante. Essas mudanças de perspectiva, segundo Arthur Conan Doyle, equivalem a uma conversão religiosa: nada mais será visto da mesma maneira que era antes.
Mesmo com todas essas “justificativas”, que sob minha perspectiva não passam de falácias, ainda acredito que o “simples” fato de um animal ter sua liberdade restringida, impedida, sequestrada para a concepção medieval de satisfazer as curiosidades e prazeres humanos, é a base do meu repúdio a esse tipo de exploração, sem mais considerações.
Mas a esperança se renovou quando vi a reação da maioria dos meus alunos, acadêmicos de Licenciatura em Ciências Biológicas, durante a visita. Quando ouvi, em cada comentário, a indignação, a revolta e a preocupação de fazer uma abordagem ambiental realmente crítica na escola. Quando vi em cada rosto a angústia pelos animais e a cegueira se dissipando, pensei: é um trabalho que vale a pena. Pois não deixo de mencionar em minhas aulas a importância de se olhar o outro lado. Por isso acredito na chamada Educação Ambiental Biocêntrica. E libertária. Com as pessoas livres para optar pelo modelo de ética que pautará sua passagem pela Terra. E essa escolhameus alunos fizeram por si. Não foi imposta. Em sua formatura, não farão de seu juramento outra falácia:
“Juro, pela minha fé e pela minha honra e de acordo com os princípios éticos do biólogo, exercer as minhas atividades profissionais com honestidade, em defesa da vida, estimulando o desenvolvimento científico, tecnológico e humanístico com justiça e paz”. (enunciado regulamentado pelo Conselho Federal de Biologia – Decreto nº 88.438, de 28 de junho de 1983). “Defesa da vida” e “justiça e paz”, entende-se, para todas as espécies.
Enquanto houver zoológicos, aquários, serpentários do tipo “vitrine”, espero que existam educadores como meus alunos (que ainda não se formaram, mas já são biólogos de coração), capazes de fazerem com seus alunos excursões a esses verdadeiros infernos (para os animais), capazes de realizar essas visitas com vistas à ação.  Capazes de conduzir uma discussão sob outra ótica, sob outra ética.
Marcela Teixeira Godoy – Bióloga e Professora Universitária.