Por milhões de dólares, índios vendem direitos sobre terras na Amazônia
11 de março de 2012 | 3h 04
MARTA SALOMON / BRASÍLIA - O Estado de  S.Paulo
Por US$ 120 milhões, índios da etnia mundurucu venderam a uma empresa  estrangeira direitos sobre uma área com 16 vezes o tamanho da cidade de São  Paulo em plena floresta amazônica, no município de Jacareacanga (PA). O negócio  garante à empresa "benefícios" sobre a biodiversidade, além de acesso irrestrito  ao território indígena. 
No contrato, ao qual o Estado teve acesso, os índios se comprometem a não  plantar ou extrair madeira das terras nos 30 anos de duração do acordo. Qualquer  intervenção no território depende de aval prévio da Celestial Green Ventures,  empresa irlandesa que se apresenta como líder no mercado mundial de créditos de  carbono. 
Sem regras claras, esse mercado compensa emissões de gases de efeito estufa  por grandes empresas poluidoras, sobretudo na Europa, além de negociar as  cotações desses créditos. Na Amazônia, vem provocando assédio a comunidades  indígenas e a proliferação de contratos nebulosos semelhantes ao fechado com os  mundurucus. A Fundação Nacional do Índio (Funai) registra mais de 30 contratos  nas mesmas bases. 
Só a Celestial Green afirmou ao Estado ter fechado outros 16 projetos no  Brasil, que somam 200 mil quilômetros quadrados. Isso é mais de duas vezes a  área de Portugal ou quase o tamanho do Estado de São Paulo. 
A terra dos mundurucus representa pouco mais de 10% do total contratado pela  empresa, que também negociou os territórios Tenharim Marmelos, no Amazonas, e  Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão e Rio Negro Ocaia, em Rondônia. 
'Pilantragem.' "Os índios assinam contratos muitas vezes sem saber o que  estão assinando. Ficam sem poder cortar uma árvore e acabam abrindo caminho para  a biopirataria", disse Márcio Meira, presidente da Funai, que começou a receber  informações sobre esse tipo de negócio em 2011. "Vemos que uma boa ideia, de  reconhecer o serviço ambiental que os índios prestam por preservar a floresta,  pode virar uma pilantragem." 
"Temos de evitar que oportunidades para avançarmos na valorização da  biodiversidade disfarcem ações de biopirataria", reagiu a ministra do Meio  Ambiente, Izabella Teixeira. 
O contrato dos mundurucus diz que os pagamentos em dólares dão à empresa a  "totalidade" dos direitos sobre os créditos de carbono e "todos os direitos de  certificados ou benefícios que se venha a obter por meio da biodiversidade dessa  área". 
Territórios indígenas estão entre as áreas mais preservadas de florestas  tropicais. Somam mais de 1 milhão de quilômetros quadrados e a maioria deles  está na Amazônia. Para empresas que trabalham com mecanismos de crédito de  carbono, criado entre as medidas de combate ao aquecimento global, as florestas  são traduzidas em bilhões de toneladas de gases-estufa estocados e cifras  agigantadas em dólares. 
Benedito Milléo Junior, agrônomo que negocia créditos de carbono de  comunidades indígenas, estima em US$ 1 mil o valor do hectare contratado. A  conta é feita com base na estimativa de 200 toneladas de CO2 estocada por  hectare, segundo preço médio no mercado internacional. 
Milléo diz ter negociado 5,2 milhões de hectares, mais que o dobro do  território dos mundurucu. Nesse total está contabilizado o território indígena  Trombetas-Mapuera (RR), que fechou contrato com a empresa C-Trade, que também  atua no mercado de crédito de carbono. 
Segundo ele, a perspectiva é de crescimento desse mercado, sobretudo com a  regulamentação do mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação  Florestal (Redd). 
Sem receber. Os mundurucu ainda não começaram a receber o dinheiro pela venda  de direitos sobre seu território. Os pagamentos acordados, em 30 parcelas iguais  de US$ 4 milhões, serão feitos até o último dia do ano, entre 2012 e 2041. As  regras constam do contrato assinado pelo presidente da Associação Indígena  Pusuru, Martinho Borum, e o diretor da Celestial Green, João Borges Andrade. As  assinaturas foram reconhecidas no cartório de Jacareacanga. 
"Não poderemos fazer uma roça nem derrubar um pé de árvore", criticou o índio  mundurucu Roberto Cruxi, vice-prefeito de Jacareacanga, que se opôs ao acordo.  Ele disse o contrato foi assinado por algumas lideranças, sem consentimento da  maioria dos índios. "A empresa convocou uma reunião na Câmara Municipal; eles  disseram que era bom", conta. 
Em vídeo na internet, uma índia mundurucu ameaça o diretor da Celestial Green  com uma borduna. "Pensa que índio é besta?", gritou ela na reunião da Câmara,  lembrando a tradição guerreira da etnia. 
O principal executivo da Celestial Green, Ciaran Kelly, afirma todos os  contratos da empresa com comunidades indígenas passam por um "rigoroso processo  de consentimento livre, prévio e informado", segundo normas internacionais. 
 
