Eduardo Galeano aponta quatro mentiras sobre o ambiente
– 17 de maio de 2011
A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem
Quatro frases que aumentam o nariz do Pinóquio:
1- Somos todos culpados pela ruína do planeta.
A saúde do mundo está feito um caco. “Somos todos responsáveis”, clamam as  vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos  responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do  meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e  mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da  ambiguidade.
Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao “sacrifício de todos” nas  declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém  cumpre. Estas cataratas de palavras – inundação que ameaça se converter em uma  catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio – não se  desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para  outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do  desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as  estatísticas confessam. 
Os dados ocultos sob o  palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a  natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira  que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do  envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos  naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da  Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta  consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, “faltariam 10  planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades”. Uma  experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro  Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam  ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses  governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque  este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do  próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo,  está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2- É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e  o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de  seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. “Nas condições de nossos  empréstimos há normas ambientais estritas”, esclarece o presidente da suprema  instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida  concreta limite a liberdade de contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do  meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram,  subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos  que poderiam ser resumidos assim: “os defensores da natureza são advogados da  pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o  investimento estrangeiro.”
O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do  desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas  virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o  Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco  dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar  projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável:  se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de  fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao  meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama  Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington.  Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come.  Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial  governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a  seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política  econômica, em função do dinheiro que concede ou promete.
A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior,  permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo,  drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as  águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram  bosques.
3- Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o  bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas… As empresas  gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte  dos gastos da Eco-92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de  Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula  da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela,  e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que  torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se  veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do  mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos  biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar  plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas  plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos  laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes,  seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell,  ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da  impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se  parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a  comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos,  mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes,  trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia  brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode  divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será  salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil.
Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100  trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e  calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando  as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos  bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas,  inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma  catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro  dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso  político.
4- A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as  ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por  exemplo: “Honrarás a natureza, da qual tu és parte.” Mas, isso não lhe ocorreu.  Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a  civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza  era pecado. E merecia castigo.
Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se  vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os  índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para  não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores  monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à  natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a  civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que  tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a  nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia  escravidão.
Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus  filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer.
Eduardo Hughes Galeano, jornalista e escritor uruguaio. É autor  de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas. Suas  obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo,  análise política e História.  Sua obra mais famosa é o livro “Veias Abertas da América Latina”.
 
