terça-feira, 6 de maio de 2014

E adianta?

A minha infância não foi segura. Foi a primeira conclusão a que cheguei quando visitei uma série de parques infantis com uma criança de três anos e meio e três adultos


Por Carla Hilário Quevedo
publicado em 3 Maio 2014 - 05:00


Ainda sou do tempo em que havia pouco mais de dois ou três baloiços nos parques infantis. Dois ou três baloiços ferrugentos e um see-saw, um espécie também de baloiço em que duas crianças, uma de cada lado, alternava para cima e para baixo. Alguma coisa deve ter acontecido para esse brinquedo ter desaparecido dos parques. A Europa, se calhar. Foi substituído em alguns sítios, por uma geringonça com uma mola gigante e segura que tira a piada ao jogo de andar para cima e para baixo até cair no chão.
A minha infância não foi segura. Foi a primeira conclusão a que cheguei quando visitei uma série de parques infantis com uma criança de três anos e meio e três adultos. Fomos os quatro a reboque no escorrega, ou os três, pronto foi só a mãe, os quatro com os olhos postos no miúdo a trepar por uma série de cabos que parecem uma aranha ou uma pirâmide no jardim da Estrela, cheio de pedrinhas irritantes no chão a interferir na brincadeira, os quatro orgulhosos porque a criança trepou mesmo quase até lá acima, três anos e meio, está tão grande, sem querer pensar, e agora?, como diabo vai descer dali? Entre chamar os bombeiros e ensinar a descer, optámos pelo segundo. No meio do caos dos mil miúdos trepadores - na Estrela continua a haver crianças, não se preocupem - reparamos num, mínimo, a cair desamparado da estrutura. Caiu nas tais pedrinhas e levantou-se sem chorar nem dizer nada a ninguém. Aquele era como nós fomos, a cair e a levantar-se logo a seguir.
Pode acontecer, não sei, haver menos preocupação com os rapazes do que com as raparigas. Uma miúda a andar de patins no mesmo parque trazia capacete, joelheiras e cotoveleiras. Olhámos os quatro para a rapariga com espanto: mas qual é a graça se não se puder espatifar na primeira curva, se for impedida logo à partida de esfolar ao menos o joelho e ter uma história para contar? Via-se que a mãe, ao lado, estava preocupada com a situação, apesar de todo o aparato. Só descansaria se a miúda andasse de patins com um minicolchão à frente e outro atrás, não dispensando, claro, a parafernália que já levava em cima, para ter o risco minimizado a valores negativos. Assim, sim, poderia passar a tarde descansada no parque, com a filha a "brincar".
A criança do grupo, que entretanto descera da estrutura complexa de cabos, como nenhum gato desceria de uma árvore - humanos: 1; não humanos: 0 - andava entretida a experimentar um chafariz e a perceber se o jacto de água podia atingir o céu. Ninguém à volta gostou da brincadeira, a não ser, claro, os quatro adultos em que manda e que fazem tudo o que quer. Acabou o dia feliz e encharcado de alto a baixo, tal como acontecera no dia anterior, quando correu entre chafarizes e quedas de água na Expo ou ainda no dia anterior, quando brincou no meio dos sistemas de rega em Belém, para divertimento dos mesmos quatro e dos jardineiros e para horror do resto do mundo lusitano.
Platão compara as crianças com cães a dada altura da "República" (537a). Não era na liberdade de correr e brincar que estava a pensar. Sugiro que actualizemos essa passagem do texto.
Jornalista.
Escreve ao sábado