Horizontes urbanos
Os dilemas e os rumos da metrópole que potencializa os problemas das principais cidades brasileiras
18 de junho de 2011 | 12h 14
autoria: CAROLINA ROSSETTI E IVAN MARSIGLIA
A morte trágica de um ciclista atropelado por um ônibus. Bairros inteiros sem luz por dias, após uma tempestade que derrubou árvores. Imagens de degradação da Cracolândia incorporadas à paisagem cotidiana. O esvaziamento do centro velho e o caos dos carros nas vias públicas. A São Paulo de 20 milhões de habitantes é hoje uma metrópole defasada em infraestrutura e em padrões de civilidade, em relação a cidades de grande porte pelo mundo.
Thiago Teixeira/AE
Visto noturna de São Paulo
Para debater os problemas potencializados na capital paulista, mas que afligem outras metrópoles brasileiras, o Aliás convidou três urbanistas: Erminia Maricato, Cândido Malta Campos e Jorge Wilheim. O trio concorda em vários aspectos: é preciso planejar intervenções urbanas substanciais, superar o modelo rodoviarista, valorizar os espaços de convivência coletiva na lógica contrária à dos condomínios e bunkers privados. A discordância mais evidente refere-se ao projeto Nova Luz, de revitalização da área central da cidade – que consideram necessário – e suas formas de implantação.
São Paulo é uma metrópole defasada?
Cândido: Sua infraestrutura está completamente defasada em relação às metrópoles do Primeiro Mundo. Há bairros com todos os serviços urbanos e outros com déficits imensos. A prioridade para a moradia popular só agora começa a deslanchar, depois do fracasso do BNH, que foi cooptado pela classe média e completamente desvirtuado. Devemos lutar para que isso não se repita. É preciso reinventar muitos bairros, especialmente os populares. Não basta dar casa para os sem-casa. Oferecer qualidade urbanística é propiciar urbanidade enquanto comportamento social. Quando se fala em adensar a cidade é preciso ir devagar com o andor. Os ricos constroem muita área, mas colocam dentro pouca gente. Os pobres quando constroem colocam muita gente, por necessidade. O planejamento tem que saber lidar com isso para que não fracasse no dimensionamento dos serviços urbanos. Mas a nossa lei de zoneamento ignora esse fato.
Jorge: O Brasil se desenvolveu com atraso, mormente pela pasmaceira do século 19 e a manutenção da escravidão quando a Europa e os EUA ingressavam na Revolução Industrial. São Paulo foi cidade pobre encarapitada sobre sua colina original durante três séculos e meio. Explodiu só no século 20.
Erminia: O período neoliberal, quando as políticas públicas sofreram um forte recuo, deixou uma herança de pobreza, violência e atraso. No entanto, podemos dizer que São Paulo é uma metrópole atual situada na periferia do capitalismo. É contemporânea de Buenos Aires, Cidade do México, Johannesburgo. Todas apresentam uma divisão entre a cidade oficial, onde o Estado está presente, e os planos urbanísticos são aplicados, e a cidade informal. Estamos acostumados a pensar São Paulo em relação a Nova York, Paris, Londres, Boston, mas é um equívoco. A ilegalidade urbanística nessas cidades é muito pequena. Nossas cidades exibem uma fratura social e territorial que se torna evidente quando se investe na “arquitetura do espetáculo”, esperando que ela alavanque um processo de modernização e nos transporta magicamente ao Primeiro Mundo. As epidemias de dengue, febre amarela, estão aí exigindo outro padrão de saúde, educação e saneamento. Não há plano urbanístico que faça essa mágica. Não é por falta de planos ou de leis que nossas cidades são como são. O Brasil tem leis festejadas no mundo todo, como o Estatuto da Cidade. Os planos e as leis não são aplicados quando contrariam interesses da elite urbana.
A morte de um ciclista chamou a atenção para a disputa de espaço nas ruas. É um problema de infraestrutura ou incivilidade?
Erminia: O modelo de mobilidade rodoviarista está conduzindo nossas cidades a um abismo. Entre as principais mazelas desse modelo estão os congestionamentos, cujos custos em horas paradas, gasto de combustível, desgaste dos veículos, são extraordinários. Segundo a FGV, São Paulo arca com R$ 26,8 bilhões por ano em horas de trabalho perdidas no trânsito. Os acidentes com morte ou invalidez apresentam números de guerra civil (400 mil acidentes com vítima, dos quais 10% com óbito). A poluição do ar causa doenças respiratórias e coronárias. São Paulo tem uma das maiores áreas impermeabilizadas do mundo, o que contribui para as enchentes. Destaque-se a orientação absurda de construir marginais eliminando as áreas lindeiras dos rios. Algumas importantes iniciativas, como os corredores de ônibus, a integração intermodal, o bilhete único, os trens urbanos, dificilmente têm continuidade de um governo para outro. A mudança dependerá daqueles que sofrem com o transporte coletivo. Mas em lugar de protestar contra a situação vigente, os “sem-carro” sonham em ter um veículo para livrar-se da “maldição” do transporte coletivo e engrossam a tragédia do trânsito.
Cândido: A incivilidade nas vias decorre do stress dos congestionamentos. Até morte por tiros já ocorreu. Acidentes com ciclistas, motoboys ou pedestres decorrem da disputa do exíguo espaço viário, que tem impedido destinar a eles um espaço segregado e protegido. Existem milhares de ruas com calçadas de apenas um metro de largura, onde postes, árvores e inclinação lateral obrigam o pedestre e o ciclista a andar na rua. Carros cada vez maiores, que vão se assemelhando a veículos militares de combate para impor respeito, proliferam na guerra diária do trânsito.
Jorge: Como temos poucas ciclovias, a proximidade de bicicletas de carros ou ônibus torna perigosa a circulação daquelas. Nesse caso não parece ter havido incivilidade, mas ela existe, é ostensiva e vergonhosa. No Brasil temos bons pilotos de corrida, mas péssimos motoristas: fere-se o código de trânsito com a arrogante certeza da impunidade (seja no desrespeito aos pedestres, seja na invasão dos acostamentos). Convém separar o uso de bicicleta para lazer do uso para transporte. Este será sempre limitado, em virtude da topografia acidentada e das chuvas de verão. Para que a bicicleta faça parte do sistema de transporte coletivo as estações de metrô e terminais de ônibus devem ter estacionamentos seguros para bicicletas.
A instalação de uma estação de Metrô causou polêmica entre os moradores de Higienópolis. O que esse conflito sinaliza?
Jorge: Sinaliza mentalidade atrasada de pequena parcela da população que, de forma paranoide, tem pavor de povo, não consegue adequar-se a conviver com o diverso. É claro que o aumento da rede de metrô é progresso desejável. A aversão (de quem pode) a tudo que é serviço público vai da saúde ao transporte, conforme descrevo em meu livro São Paulo: Uma Interpretação. É resultado de cultura migrante e sua repulsa à lei que iguala os cidadãos, acrescida, historicamente, ao sentimento de privilégio herdado de um Portugal medieval. O carro privado não será substituído por um bom sistema de transporte público, mas seu uso racional diminuirá os congestionamentos e o custo dos estacionamentos.
Cândido: O metrô não descaracteriza necessariamente o bairro. Se a estação for discreta como são as de Londres e Paris, com apenas uma entrada no piso de uma calçada e uma pequena placa sinalizando a passagem, a paisagem física em nada será alterada. A paisagem humana também não será. O Metrô não trará novos transeuntes para Higienópolis. Apenas dará uma opção a mais de transporte para os que por lá já trafegam. Em São Paulo, o que vemos é uma flutuação entre os pró-carro os pró-transporte coletivo. Basta um dado para convencer qualquer um: em 2009, 600 mil carros foram acrescidos à frota. Para atender só essa demanda seriam necessárias 140 Av. Paulistas a mais. Não para melhorar o trânsito, apenas para não piorá-lo. Precisamos seguir o exemplo de Londres e Copenhague e instituir o pedágio. O pedágio pago por poucos eliminará o pedágio oculto pago por todos em termos de tempo e saúde perdidos. O economista da FGV Marcos Cintra estimou essa perda em R$ 33 bilhões ao ano. Isso dá R$ 12 por pessoa por dia que não sai do bolso, sai do tempo perdido no trânsito, do stress, dos roubos, brigas e assassinatos na crescente guerra no trânsito. O dinheiro do pedágio, se bem aplicado, dobrará imediatamente nossa capacidade de em São Paulo expandirmos o metrô.
Erminia: A rejeição ao transporte de massa em determinados bairros acontece em outras metrópoles, e até mesmo no mundo desenvolvido. Moradores de um bairro de alta renda de Vancouver, cidade considerada de maior qualidade de vida no planeta, lograram modificar o traçado do metrô para evitar sua proximidade. Pesquisas mostram que o metrô é o equipamento urbano que mais valoriza imóveis, mas no caso de trazer uma “vizinhança diferenciada”, pode acontecer o contrário. O professor Flávio Villaça já demonstrou que há correlação entre rendas mais altas e o traçado do metrô em São Paulo. Nem sempre a população se comportou como os moradores de Higienópolis.
Novas imagens das cracolândias frequentaram o noticiário. O urbanismo tem ferramentas para mitigar essa tragédia social?
Erminia: A impressão que se tem é que os governantes e a maior parte da sociedade gostariam que esses marginalizados evaporassem, pois se negam a investir na recuperação dessa população como fazem algumas entidades, com sucesso relativo, em São Paulo. Estudos mostraram que a globalização mudou as características da pobreza urbana. Buenos Aires começou a lidar com moradores de rua. As assistentes sociais se surpreenderam ao encontrar indivíduos de nível universitário nas ruas, quando não famílias inteiras. Na última década a população de rua de São Paulo cresceu 57%, passando de 8.706 em 2000 para 13.666 em 2009. O censo de moradores de rua apontou que 90% deles têm profissão. A questão das drogas é de saúde, pois se há uma concentração de consumidores de drogas nas chamadas cracolândias, há muito mais consumidores dentro de quatro paredes, em casas simples ou mansões.
Cândido: O urbanismo não produz o viciado nem o traficante de drogas. O urbanismo associado a um mais completo planejamento urbano contribuirá em certa medida. Os Planos Diretores, se realmente assumidos pela população e governantes, contribuirão para que a infraestrutura dos serviços urbanos se complete de modo equilibrado e sustentável sem produzir as perdas sociais que sua ausência nos inflige.
Jorge: A questão dos viciados em crack e outras drogas pertence ao campo da saúde pública. O urbanismo não tem ferramentas para mitigá-la. A importante qualificação urbanística de bairros e do centro histórico, determinada pelo Plano Diretor Estratégico, pode e deve melhorar os espaços públicos para usufruto de quaisquer cidadãos.
No C40 São Paulo Summit 2011, foi discutido o conceito de ‘cidades compactas’. Seria esse um modelo para São Paulo?
Jorge: A polinucleação de cidades tão grandes quanto São Paulo constitui diretriz de bom senso. O Plano Diretor Estratégico de 2002 e os planos das subprefeituras de 2004 dispõem sobre a diversidade de uso do solo e as centralidades desses polos. Porém desde 2004 não se procedeu à continuação do plano, e se tirou poder dos subprefeitos. Ainda temos que planejar em detalhe as melhorias em bairros e na lei de uso do solo, a fim de tornar São Paulo uma metrópole polinucleada.
Cândido: Uma grande metrópole se caracteriza por oferecer áreas altamente especializadas de comércio e serviços. Como a Santa Efigênia, a 25 de março, a Rua das Noivas na João Theodoro, etc. Essa é sua razão de ser. O que se discute é a criação de polos ou centralidades regionais com comércio, serviços e indústria na escala em que a região possa sustentar. A zona leste, com 4 milhões de habitantes, comporta seguramente uma centralidade regional. É uma distorção ela não existir, obrigando muitos a se deslocarem ao centro histórico.
Erminia: A tese das cidades compactas é unanimidade entre os urbanistas. A insustentabilidade dos subúrbios americanos, dispersivos e extensivos, é condenada por cidades europeias que já incorporaram o modelo compacto. Mas estamos na periferia do capitalismo, em cidades nas quais a dispersão da periferia de baixa renda ou dos loteamentos fechados de alta renda é irregular. O Estado não controla o uso e a ocupação do solo. E o mercado imobiliário formal se dirige a uma parcela restrita da população, um pouco alargada pelo Minha Casa, Minha Vida. Grande parte da população resolve seu problema de assentamento ocupando terra não urbanizada, frequentemente em áreas de risco, produzindo um espaço sem lei. São faces da mesma moeda: a periferia é como é porque o mercado formal é como é. No Norte e Nordeste, a ilegalidade supera em muito os domicílios legais. Nas metrópoles do Sudeste e Sul mais de 30% são assentamentos informais. Por isso, é preciso cautela ao importar modelos.
Críticos do projeto Nova Luz chamam a atenção para o suposto ‘caráter excludente’, focado na viabilização de negócios imobiliários.
Erminia: O centro é um espaço privilegiado. Tem a maior concentração de empregos da metrópole, a melhor condição de transporte de massa, e infraestrutura de água, esgoto, iluminação, pavimentação, drenagem. Por que o mercado imobiliário não se interessou por esse espaço? Porque ali o tecido urbano é formado de pequenas propriedades, portanto muito parcelado para a tipologia das torres com clubes. A Prefeitura poderia ter escolhido fortalecer aquele tecido urbano que constitui a memória da cidade. Fortalecer o pequeno comércio e implementar uma política de qualificação de trabalhadores. Mas essa não é a vocação da elite. Então ela desapropria pequenas propriedades para agregá-las e produzir grandes ao gosto do mercado. Ouvi uma representante da Prefeitura falar em atrair a IBM para fomentar um polo tecnológico com a Nova Luz. O polo tecnológico já está ali e tem importância na América do Sul. Por que não apostar nos que já estão lá lutam para sobreviver, no comércio de informática, nas confecções? Por que repetir a estética do shopping? Sem dúvida, há necessidade que a Caixa adapte seus financiamentos para garantir moradia para um mix de classe média e média baixa no centro.
Jorge: Infelizmente, enquanto nossa sociedade tiver o atual grau de desigualdade (embora diminuído nos últimos dez anos) toda melhoria urbana localizada resultará em algum deslocamento daqueles moradores ou daquele pequeno comércio, que não conseguirão acompanhar a elevação de valor imobiliário e dos aluguéis resultantes das melhorias realizadas. O direito de propriedade não é superior ao direito do poder público, legalmente constituído e traduzido pela Constituição. Desapropriações, quando feitas por projetos de interesse público, são justificadas. O projeto me parece bem elaborado. Haverá alguma desapropriação na Nova Luz, mas não se trata de uma onda de desapropriações.
Cândido: A exclusão social, se ocorrer, decorrerá da preferência que os moradores de baixa renda tiverem por ganhar uma valorização imobiliária dos apartamentos que obtiverem através da implantação de moradias de interesse social previstas nas Zonas Especiais de Interesse social definidas no Plano Diretor, que estão sendo obedecidas. O Plano Urbanístico promete ser da mais alta qualidade técnica e, se implantado ao longo de 15 anos por sucessivas administrações, poderá se constituir em uma inflexão altamente positiva para a cidade. O plano terá que ser aprovado pela Câmara para aumentar as garantias de sua continuidade. As garantias servirão para os empresários e os moradores receosos de serem expulsos pelas forças do mercado. Sendo assim, não vejo nenhum direito de propriedade sendo desatendido.
Rio e SP têm centros esvaziados e degradados. Por que não se recuperam estes espaços carregados de peso histórico e simbólico?
Cândido: Revitalizar os centros degradados é diretriz consensual no Brasil, mas de pouco adiantará se o processo que produz o esvaziamento não for estancado. O que produz o esvaziamento é a perda de condições de habitabilidade para a classe média. Essa perda é causada por congestionamentos. O abandono resultante puxa atrás de si a criminalidade, a sujeira e os sem teto.
Jorge: A requalificação dos centros está sendo tratada pelas duas prefeituras, embora de forma hesitante. No caso de São Paulo, o financiamento pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento destinado a obras no centro, negociado pela prefeita Marta Suplicy, foi interrompido, modificado e pouco utilizado por Serra e Kassab.
Erminia: A recuperação de centros urbanos é defendida por movimentos sociais e urbanistas como local de moradia para famílias de renda média e média baixa como uma forma de minimizar a ocupação desenfreada dos mananciais ou áreas de risco. Nossos centros urbanos apresentam muitos edifícios ociosos que não cumprem a função social da propriedade prevista na Constituição de 1988. Constatamos em pesquisas no Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos, da FAU-USP, que em lugar do imposto progressivo para imóveis ociosos a prefeitura aplicava o imposto regressivo: proprietários de imóveis vazios que deviam milhões em IPTU tinham vantagem de pagar a longo prazo com descontos na dívida. Registre-se também a desapropriação de quadras para preparar terreno para um mercado que trabalha apenas com a marca da terra arrasada. O poder público tem feito o oposto do que deveria.
A violência tem transformado residências e condomínios em ‘bunkers’. Pode o planejamento urbano equacionar o problema da valorização do espaço público e da segurança?
Cândido: Os bunkers são decorrência da busca ilusória de proteção. Não esqueçamos os automóveis que querem ser bunkers quando blindados e até em certa medida, tanques de guerra. Não recrimino quem busca segurança para os seus familiares. Mas sonho com uma cidade sem muros como a professora da Unicamp Teresa Caldeira muito bem defende. Gostaríamos de ter praças sem grades e casas entrelaçadas com as ruas que lhes servem de acesso. As crianças brincando em segurança no espaço público. Na minha infância na Rua Melo Alves em São Paulo, as turmas da rua eram uma alternativa a convivência com os primos, enriquecendo a experiência de vida.
Erminia: Os loteamentos fechados que estão abundando no entorno das Regiões Metropolitanas de São Paulo, Campinas e Santos são ilegais. Não seguem a lei federal 6766/1979 segundo a qual não há como admitir parcelamento de solo fechado. Não há o que fazer até que a lei seja seguida.
Jorge: Convém separar a violência real do medo de violência e do uso desse medo para fins comerciais. Os condomínios fechados são a anticidade pois representam um conceito segundo o qual todo o espaço público é perigoso e estranho, devendo seus riscos serem administrados pelo poder público, pois é um espaço destinado aos outros, àqueles que não conseguem alcançar o padrão do mercado imobiliário. Condomínios fechados não deveriam parecer-se a bunkers, pois essa solução imobiliária favorece os assaltantes, que uma vez dentro, agem com total invisibilidade.
Depois de um vendaval que danificou a fiação elétrica, bairros ficaram sem luz por dias. Voltou-se a discutir o enterramento dos fios. Essa é uma prioridade urbanística?
Cândido: Enterrar os fios não é hoje uma prioridade social. É uma conveniência estético-urbanística. Mas é bom irmos começando a implantar esse benefício nas ruas com ajuda dos comerciantes, que com isso atraem mais clientes.
Erminia: Fiação enterrada não resolve esse problema, embora seja interessante do ponto de vista paisagístico. É preciso melhorar a qualidade da gestão da arborização urbana. E isso exige investimento.
Jorge: O centro tem rede subterrânea há décadas. É preciso agir de forma mais enérgica cobrando os investimentos da AES Eletropaulo, empresa que tem atrasado metas sem que governos as cobrem.
Qual sua opinião sobre o impacto do novo Código Florestal nas áreas urbanas?
Cândido: O código florestal deveria reconhecer a especificidade urbana e, com realismo, inverter a tendência pavimentadora. Não podemos confundir o conceito de cidade compacta com o de cidade entupida. Chegamos ao absurdo de legalizar os tamponamentos dos córregos, que deslizam hoje canalizados e escondidos, recebendo esgoto. O Secretário do Verde e Meio Ambiente, Eduardo Jorge, está conseguindo crescente apoio para renaturalizar córregos na cidade, a começar pelos da periferia, como o Verde em Itaquera e o Ribeirão Perus, em Perus. A tônica até passado recente foi a da ocupação dos vales por avenidas e construções. Obter a reversão desse processo vai demorar, mas já começamos.
Erminia: As cidades ocupam menos de 1% do território brasileiro. Têm aspectos particulares na ocupação do solo e exigem uma legislação específica. As cidades apresentam problemas ambientais gigantescos. Elas despejam nos córregos, rios e praias o esgoto de 66 milhões de pessoas. Em compensação, a produção rural, especialmente o agronegócio, despeja mais de 1 milhão de toneladas de agrotóxicos (mais de 5 kg por habitante) nas terras e nos rios. Precisamos discutir o tema do meio ambiente de forma unificada, envolvendo uma estratégia para água, energia, produção sustentável de alimentos, a preservação das matas e antes de mais nada a democratização da propriedade da terra urbana e rural.
Outras metrópoles brasileiras apresentam problemas semelhantes?
Jorge: Todas as cidades brasileiras trazem a marca da desigualdade social histórica, assim como das características de uma cultura migrante. Há problemas da carência de transporte público (atraso do metrô e de trens, ônibus competindo por espaço com os carros) em Brasília, Rio, Curitiba, Recife, Salvador, Porto Alegre. As carências habitacionais e de esgoto são também comuns a todas as capitais e cidades grandes.
Erminia: A questão metropolitana está no limbo no Brasil. Todas apresentam gargalos, mesmo Curitiba. Há poucos conselhos metropolitanos para políticas específicas de transporte ou direitos humanos. O que predomina é o desgoverno. Caberia ao Ministério das Cidades a coordenação das diretrizes de uma política nacional, mas o ministério não parece estar preocupado com a política urbana. Os governos municipais não estão interessados em limitar ou regular as forças locais, especialmente em relação à função social da propriedade, prevista no Estatuto da Cidade. Os governos estaduais não estão interessados em contrariar as políticas paroquiais dos municípios. O que temos, então, são obras sem plano e plano sem obras.
Cândido: Não há exceção. Mesmo Brasília e Curitiba, as mais bem planejadas em seus núcleo centrais, apresentam, em graus variados, as mesmas tendências de congestionamentos, crescimento periférico pouco controlado, enchentes, habitações insalubres e com risco de desmoronamento, déficits sociais de equipamentos públicos imensos refletindo as desigualdades estruturais que herdamos do passado.
Que metrópoles no mundo têm encontrado soluções que sirvam às nossas cidades?
Jorge: Há bons exemplos de soluções pontuais adaptáveis: na Cidade do México (ritmo adequado de crescimento da rede de metrô), Bogotá (obediência ao Plano Diretor por quatro sucessivos prefeitos e ônibus em faixa própria), Tóquio (bom sistema de transporte público intermodal), Nova York (com o Central Park), Boston e Seul (coragem de demolir “minhocões” recuperando a paisagem urbana), Paris (sistema sofisticado de detectar vazamentos na rede de água), Londres (manutenção impecável e bom uso das áreas verdes), Buenos Aires (boa comunicação visual de orientação), Toronto (administração pública eficaz). Teria gostado de que São Paulo se parecesse com Paris... Mas ela se assemelha a Nova York, pois é uma cidade americana. Tomara que cheguemos a ter a mesma qualidade de calçadas.
Cândido. As soluções para as cidades são antes dependentes de macrossoluções para os países. Exemplos pontuais são como voo de galinha. Não vão longe. As sociais democracias da Europa, com propriedades semipúblicas, que limitam a especulação imobiliária são as que mais me atraem.
Erminia: Faz parte da tradição brasileira buscar modelos no Primeiro Mundo. Temos muito o que aprender com eles, mas num país com grande parte da população excluída da cidade oficial, onde as leis se aplicam de acordo com as circunstâncias e impera o patrimonialismo ou a privatização do Estado, é preciso fazer as devidas adaptações dos modelos preferidos pelo marketing urbano ou mesmo ousar recusá-los.