Gota d´água | 16/05/2014 15:12
O que sobra depois de esgotar a Cantareira e o volume morto?
Especialistas dizem que, ao evitar racionamento, SP vive ilusão da abundância em plena escassez de água, e que uso do volume morto deveria ser “última esperança”
Sistema de captação de água do sistema de abastecimento Cantareira na represa de Jaguari, em Joanópolis
São Paulo – Faltam 75 dias para o volume útil do sistema Cantareira esgotar. Mas, na Grande São Paulo, é como se nada estivesse acontecendo. Um turista a passeio, desligado do noticiário, talvez nem se dê conta que a região atravessa sua pior crise de seca, evento que, segundo estudo encomendado pelo próprio governo paulista, ocorre só a cada 3.378 anos.
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Até mesmo aquele morador que esguicha água com a mangueira na calçada pode ser outro à margem do problema. Afinal, pelo discurso oficial, "água não falta na torneira" — apesar da multiplicação de reclamações sobre supostas interrupções no abastecimento.
Racionamento? Não é o caso, diz o governo.
Especialistas ouvidos por EXAME.com definem o quadro como uma ilusão da abundância em plena escassez, com consequências nefastas para o meio ambiente, a economia e para o próprio bem-estarda população.
Qualquer pessoa que entenda um pouco de gestão de recursos hídricos sabe que uma das principais estratégias para enfrentar qualquer quadro de escassez crítica de água passa pela redução do desperdício, a começar pelas perdas na distribuição (que em SP impressionam), e do consumo excessivo.
Enquanto municípios da região do PCJ, Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, adotam o racionamento, a região metropolitana tomou a contramão e, assim, tem passado praticamente incólume a toda a crise.
Ações de bonificação para quem economiza água em casa e, mais recentemente, de multas para quem extrapola, ajudam, mas, como se vê, não salvam o sistema do colapso. A olhos vistos, a Cantarareira entra, dia após dia, na UTI.
A negação só agrava o quadro
Ontem, começou a captação da água do chamado “volume morto”.
Ao todo, são cerca de 400 milhões de metros cúbicos de água localizados abaixo do nível das comportas. Com esse back-up, o nível de água do Sistema Cantareira alcançou 26,7%, um aumento de 18,5 pontos percentuais no que foi registrado ontem, 8,2%, o menor nível de sua história.
O uso antecipado dessa reserva estratégica preocupa especialistas em recursos hídricos.
“Se para manter o atual ritmo de consumo você utilizar todo o volume do Cantareira e também do volume morto, é capaz de só ter água por mais três meses”, afirma o secretário executivo do PCJ, entidade que representa 75 cidades abrangidas pela bacia e grandes empresas usuárias da água, Francisco Lahoz.
“E isso sem nem chegar a outubro, a época da chuva. Pior, e se chegar lá e não chover o suficiente, como ocorreu nos últimos dois anos?”, questiona.
Ele não está sozinho.
A Agência Nacional de Águas (ANA) junto com o Departamento de Água e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE) anunciaram, na última terça, que mesmo com a utilização do volume útil restante e do volume morto não haverá disponibilidade hídrica suficiente para abastecimento, durante o pico da estiagem, entre os meses de agosto e setembro.
A saída lógica seria tentar preservar o Cantareira, com a redução do consumo, e adiar a retirada do volume morto.
Mas, sozinha, a ANA não tem poder para declarar racionamento nos municípios, manobra prevista no Decreto 3692/2000.
A Agência só pode declarar o chamado racionamento preventivo caso municípios e governos estaduais declararem estado de emergência ou calamidade pública.
Para a Sabesp, essa não parece ser uma preocupação latente.
"Somente se não chover até outubro é que teremos problemas", disse, nesta semana, o diretor de relações com investidores da Sabesp, Mario Sampaio.
Qual será o plano C? Procurada pela redação, a Sabesp não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Perde o meio ambiente, perde a economia
Esgotar a Cantareira traz efeitos perigosos e de curto prazo. Se não tiver chuva suficiente em outubro – suficiente mesmo, para recuperar o solo ressecado e encher o sistema –, “vai ser o caos”, alerta Lahoz, do PCJ.
O especialista explica que qualquer metodologia de abastecimento público recomenda que se libere no máximo 70% da vazão que entra, assim você permite a recuperação do manancial.
“É questão de pensar na sustentabilidade econômica do país, que está ameaçada por um manejo equivocado da Cantareira”, sustenta.
Deixar o manancial se esgotar também gera graves efeitos ambientais.
“Quando eu esgoto uma represa, eu esgoto os lençóis freáticos do entorno e afeto o ecossistema. O fato de ainda ter água na torneira não significa que os problemas ainda não surgiram”, pondera a bióloga Silvia Regina Gobbo, da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).
Ela critica o uso antecipado do volume morto: “Estamos gastando uma água que a gente não sabe se vai ter”.
“Digamos que exploramos o volume morto e ele acabe. O começo da chuva não será suficiente para recuperar o sistema, será preciso mais tempo. Muitos fatores influenciam esse processo, eu perco água por evaporação, perco porque ela infiltra no solo, não é uma recuperação tão rápida”, completa.
Os prejuízos são ainda incalculáveis e permanentes para algumas espécies da fauna e da flora.
À medida que o volume dos rios diminui, poluentes que se acumulam no fundo começam a se mover, contaminando as águas, com reflexos imediatos para os peixes e outros animais que não recebem água tratada.
Nos rios do PCJ, a baixa vazão pode estar relacionada à mortandade de cascudos no Rio Camanducaia, na altura de Amparo, registrada em fevereiro. A espécie é uma das mais resistentes e vive no fundo dos mananciais.
Esgotar o sistema ainda gera impacto nos aquíferos, segundo a especialista.
A região de Piracicaba, por exemplo, é ponto de recarga do aquífero Guarani. O rio é mantido pelo aquífero em época de estiagem. Mas os aquíferos estão baixos este ano e podem afetar a perenidade dos rios.
Gestão em xeque
Faz pelo menos quatro anos que o Estado de São Paulo está a par dos riscos de desabastecimento de água na Região Metropolitana.
Em dezembro de 2009, o relatório final do Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, feito pela Fundação de Apoio à USP, não só alertou para a vulnerabilidade do sistema Cantareira como sugeriu medidas cabíveis a serem tomadas pela Sabesp a fim de garantir uma melhor gestão da água.
O estudo afirmava que o sistema da Cantareira tinha "déficits de grande magnitude". Entre as recomendações feitas pelo relatório estavam a instauração de processos de monitoramento de chuvas e vazões do reservatório e implementação de postos pluviométricos.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o promotor Rodrigo Sanches Garcia, do Grupo Especial de Defesa do Meio Ambiente, afirmou que a Sabesp já tinha conhecimento sobre a necessidade de melhorias há mais tempo.
"Na outorga de 2004, uma das condicionantes era que a Sabesp tivesse um plano de diminuição de dependência do Cantareira. O grande problema foi a demora de planejamento", contou.
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) instaurou um inquérito civil para esclarecer a crise no Sistema Cantareira.
Além de considerar a falta de chuvas sobre as bacias hidrográficas que alimentam a Cantareira nos primeiros meses do ano, o inquérito vai apurar informações sobre a possibilidade de erros de gestão da Sabesp.