Samanta Pineda
"Não será possível cumprir regras das APPs nas cidades"
Advogada que participou ativamente das discussões do Novo Código Florestal e foi consultora da Frente Parlamentar da Agropecuária dá a sua visão dos pontos polêmicos da lei e critica a falta de autonomia dada aos municípios para legislar sobre as Áreas de Preservação Permanente dentro das cidades
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Romário Ferreira
O tema Código Florestal é sempre motivo para discordâncias e dúvidas. A começar pelo fato de ser chamado de código, sendo que é apenas uma lei federal (Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012). Ele é chamado de código apenas por convenção. Código é um conjunto de regras que regem um determinado tema, como o Código Civil, que rege tudo que se faz na vida civil. A explicação é da advogada Samanta Pineda, especialista em direito ambiental do escritório Pineda & Krahn Sociedade de Advogados. Ela ressalta, porém, que não há nenhum problema em chamá-lo de código, pois o termo é tão aceito que, tecnicamente, é pouco questionado.
"Se existe um vazio urbano, certamente acontecerá ocupação irregular. Esse impacto ambiental da não ocupação é mais grave e prejudicial ao meio ambiente do que a ocupação regular"
A advogada participou ativamente das discussões acerca do novo código. Ela conta que fez a primeira minuta da lei e participou de todas as discussões e alterações. Além disso, foi consultora de cada um dos relatores, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, e analisou, como consultora da Frente Parlamentar da Agropecuária, emendas e alterações oferecidas até o final do processo. O envolvimento com o assunto rendeu a ela argumentos para discutir alguns pontos da lei, como a diminuição da autonomia dos municípios para legislar sobre questões ambientais. Ela critica principalmente a determinação para que as Áreas de Preservação Permanente (APPs) permaneçam intactas nas cidades. "É uma utopia acreditar que não haverá ocupação irregular nessas áreas", argumenta.
Próximo de completar um ano da sanção da lei, esses e outros conflitos em torno das novas normas ainda persistem. A recomendação para recuperar a vegetação suprimida das APPs, por exemplo, também vem sendo debatida, já que, em tese, obriga a demolição de uma construção para que a área preservada seja reconstituída - o que pode afetar o princípio do direito adquirido, assegurado pela Constituição Federal. Na entrevista a seguir, Samanta dá a sua visão dessas e de outras questões conflituosas.
Alguns advogados criticam a abordagem dada às áreas urbanas no novo código florestal. Para muitos deles, alguns conflitos poderiam ser resolvidos se o município legislasse sobre as questões ambientais dentro do próprio território, até por conhecer melhor as peculiaridades da região. Isso seria o ideal?
O ideal seria que o próprio prefeito designasse o uso das APPs dentro dos municípios, conforme o interesse municipal ou local, desde que houvesse um estudo comprovando que não há risco de impacto ambiental. Sem ocupação na área preservada, sabemos que ali poderá surgir uma favela. Se existe um vazio urbano, certamente acontecerá ocupação irregular. Esse impacto ambiental da não ocupação é mais grave e prejudicial ao meio ambiente do que a ocupação regular. Então, o município deveria legislar, sim. Quando aquela área preservada - vamos pensar numa cidade em crescimento que tem uma área rural - é de 30 m na margem do rio, a cidade pode se expandir e pegar essa margem preservada para fazer loteamento, incorporação etc. Assim, aquela margem pode ter um uso diferenciado. Talvez colocar uma edificação com alguma solução tecnológica de engenharia. Enfim, alternativas de uso e não proibição de uso.
Se a APP não tiver um dos usos previsto na lei (utilidade pública, interesse social ou atividades de baixo impacto ambiental), a recomendação é que ela permaneça intacta?
Sim, e é exatamente isso que eu critico. É uma utopia acreditar que não haverá ocupação irregular nessas áreas. Uma cidade em expansão, como Curitiba, está crescendo para o lado dos mananciais, onde não se pode construir. É lógico que vai surgir uma ocupação irregular. Então, a sugestão que tínhamos feito - mas que não foi aceita - é que, quando a área rural virasse urbana, fosse permitido um loteamento e que as APPs fossem relativizadas, passando a decisão sobre elas para o prefeito.
E como seria esse processo?
Sugerimos que fosse feito um conselho municipal deliberativo de meio ambiente e que nesse conselho participassem as ONGs, o Ministério Público (MP), entre outros, para que se decidisse localmente a forma de tratar aquela APP. A discussão ocorreria entre todos os interessados e seria dado o melhor tratamento. Se a lei federal diz que não pode construir numa margem de 30 m do rio, que liberdade o prefeito tem? Cada cidade tinha de ter seu conselho para deliberar a respeito de qual é a forma de regularizar. Acho que isso fere o princípio federativo, porque a Constituição diz que o Brasil é uma república federativa e que são entes dessa federação a União, Estados e municípios. Só que o município não pode fazer nada nesse caso e tem de respeitar todas as leis acima dele. Isso fere o pacto federativo.
Mas se deixar a cargo dos municípios, estamos falando da criação de mais de cinco mil legislações diferentes. Isso não seria um problema?
Os municípios que não têm um corpo técnico definido, só podem fazer o plano diretor se fizerem convênios entre municípios - ou seja, um município empresta o técnico, outro empresta equipamento, o conselho, e entre eles fazem esse plano. Da mesma forma seriam tratadas as leis ambientais. Os convênios estimulariam os prefeitos e as câmaras municipais a se organizarem para dar um tratamento ambiental a sua própria cidade. Estimularia a criação de conselhos municipais de meio ambiente, formação de técnicos destinados a essa área e faria com que as cidades cuidassem do meio ambiente.
"A sugestão que tínhamos feito - mas que não foi aceita - é que, quando a área rural virasse urbana, fosse permitido um loteamento e que as APPs fossem relativizadas, passando a decisão sobre elas para o prefeito"
Haveria essa certeza de que o município se preocuparia em legislar sobre essa questão?
O licenciamento ambiental pelo próprio município só pode ocorrer se a cidade tiver determinados critérios, como plano diretor de acordo com o Estatuto das Cidades e conselho municipal deliberativo. E o segredo é exatamente esse conselho, que reúne os setores interessados, o MP, os órgãos ambientais, as ONGs. Se esse conselho deliberativo existir, o município pode se autolicenciar, mas só atingiria sua autonomia para legislar a respeito das APPs quando tivesse também a estrutura de secretaria municipal de meio ambiente com os técnicos necessários.
Então, seria viável?
Sim, e viabilizaria de uma forma não ameaçadora para o meio ambiente e não proibitiva como aconteceu com a edição do código florestal. Não será possível cumprir as regras das APPs nas cidades. Não adianta ter a ilusão de que a recuperação da vegetação [nas áreas preservadas] vai ser cumprida nas cidades. O sujeito tem uma casinha há 100 anos na margem do rio e o promotor manda demolir o imóvel. Isso vai ocorrer porque a lei veio de uma forma errada.
Isso não afeta a questão do direito adquirido?
Essa é uma questão importante. Funciona assim no direito: quem desmatou de acordo com a reserva legal da época, tem direito adquirido; mas com relação à área de preservação, não tem direito adquirido. Eu sempre comparo com o trânsito. Eu comprei um Fusca 1969. Na época, ele não vinha com cinto de segurança de fábrica. A lei que exigia o cinto veio depois. Por que eu não tenho direito adquirido a usar meu carro sem o cinto? Porque eu estou tratando na lei de um direito indisponível, que é o direito à vida. A reserva legal não tem função, ela é só uma imposição legal para fazer uma preservação de bioma num determinado percentual. As APPs, pelo contrário, têm essa função: para evitar erosão, não pode tirar mata da encosta. Essa função protege o direito da sociedade e não dá direito adquirido ao particular.
Então, como não existe direito adquirido, o pedido de desapropriação para recuperação da APP é legal? Já tem ciência de casos como esse?
Sim. Porque a mudança da lei protege o direito coletivo e esse direito é mais importante do que o direito particular, pois trata do direito que a população tem ao meio ambiente equilibrado. O direito adquirido é constitucional desde que ele vete sobre bens disponíveis. Tenho um cliente em Ribeirão Preto que está tendo de demolir um galpão de sua indústria. Ele tem uma indústria há 35 anos no Centro da cidade e atrás passa um rio. Um dos barracões está a 7 m do rio e terá de ser retirado. É um absurdo, mas eu não tenho argumento jurídico para questionar contra. Eu teria se o código tivesse sido inteligente do ponto de vista urbano e tivesse dado soluções para esses casos.
"Tenho um cliente em Ribeirão Preto que está tendo de demolir um galpão de sua indústria. É um absurdo, mas eu não tenho argumento jurídico para questionar contra"
Em Petrolina, no Pernambuco, advogados relatam que o MP já entrou com ações dizendo que a cidade tem de se afastar 500 m do rio São Francisco, por ser uma APP. Em sua opinião, qual será o entendimento para casos como esse?
É impossível, não tem como cumprir. Esperamos que haja bom-senso do Judiciário para começar a fazer uma jurisprudência, um reiterado de julgados de bom-senso para que a jurisprudência supra a deficiência da lei. Embora seja obrigatório recuar do rio, há outros valores que devem ser pesados. A Constituição defende uma série de valores, o meio ambiente é um deles, mas eu tenho a liberdade, dignidade, direito à vida, alimentação etc. A esperança é que outros direitos constitucionalmente garantidos sejam levados em conta por esses juízes para que não deem uma sentença que acabe fazendo um bem coletivo, mas acabando com a vida de um monte de gente. Outra questão é: se o sujeito sair da casa dele, alguém vai lhe dar dinheiro para construir outra? Eu discuto também a culpa do poder público, que permitiu a construção em área proibida. Além disso, questiona-se se a vegetação local irá se recuperar e para onde vai o material demolido. Há muitos fatores a serem analisados antes de se entrar com uma ação como ocorreu em Petrolina.
Essas questões aumentam a insegurança jurídica dos empresários do setor?
Com certeza. Conselhos que eu daria para os empreendedores: os projetos que estão em andamento, se estiverem em APPs, vão ter de ser revistos. Agora, o órgão público ambiental tem culpa porque ninguém começa uma construção sem aprovação. Se o construtor está com um prédio na sexta laje, tem todos os alvarás necessários, mas está na beira do rio, não faz sentido que ele seja penalizado a essa altura. O primeiro conselho a quem já tem empreendimentos em andamento é envolver todo o processo nessa discussão. Mas, para os novos loteamentos, tenho recomendado enquadrar as APPs. Quando a loteadora pegava uma área para lotear, havia o raio da reserva legal, que não podia ter nenhum uso. Mas hoje ela já pode ser convertida em área verde. Então, nesse projeto novo de loteamento, a sugestão é pegar as APPs e já propor a criação de áreas verdes úteis com a porcentagem de área verde [reserva legal] que a loteadora é obrigada a respeitar.
De forma geral, como tende a ser o licenciamento ambiental daqui pra frente? Vai haver mais conflitos?
Com certeza. Quem for aprovar um loteamento ou uma incorporação tem de respeitar as APPs e as reservas legais. O problema é que, nessas áreas que vão ficar desocupadas, a tendência de ocupação irregular é muito grande. O loteador pode colocar à venda um loteamento em que, por conta de se abandonar uma margem de rio, poderá existir uma ocupação irregular ao lado do empreendimento, desvalorizando-o. Quem vai ressarci-lo desse prejuízo? Porque ele podia incorporar aquela parte talvez fazendo um projeto alternativo, mas ele não pode, é proibido.
"O loteador pode colocar à venda um loteamento em que, por conta de se abandonar uma margem de rio, poderá existir uma ocupação irregular ao lado do empreendimento, desvalorizando-o. Quem vai ressarci-lo desse prejuízo?"
No caso ele poderia incorporar fazendo alguma obra de infraestrutura como prevê a lei?
Infraestrutura pública. Particular ele não pode fazer. Porque as áreas de preservação só podem ser utilizadas por utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental. Se for infraestrutura pública, ele consegue caracterizar como interesse social. Se for particular, não.
Em janeiro, a Procuradoria Geral da República questionou alguns trechos do código e encaminhou ações ao Supremo Tribunal Federal (STF). Quais são esses trechos e qual é a alegação?
São três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), que questionam 23 tópicos do código. Não são 23 artigos, mas tópicos, inclusive dentro dos artigos. O principal questionamento é que houve um retrocesso de proteção. Entre as partes principais questionadas estão as que diminuem a proteção na margem dos rios para pequenas propriedades; a que dá direito adquirido à reserva legal; e a data de 22 de julho de 2008, pois quem desmatou até essa data pode entrar num programa de regularização, mas eles dizem que isso é anistia a desmatadores. Essas ações foram propostas no STF e três ministros as receberam: Luiz Fux, Rosa Weber e Gilmar Mendes. O ministro Luiz Fux, que é o mais ambientalista deles, disse que como é da mesma matéria, ele quer decidir sobre as três ações.
Há alguma previsão de quando sairá o resultado?
Não, porque não existe prazo para os ministros julgarem. Eu tenho ações que estão lá há cinco anos e não foram julgadas.
"Já recebi, principalmente nessa troca de prefeitos que aconteceu em janeiro, muitos secretários de meio ambiente querendo fazer revisão da lei inteira. E isso vai acontecer em nível estadual também"
As legislações municipais já estão se atualizando conforme o novo código?
Isso é obrigação. Qualquer legislação municipal que contrarie a lei federal precisa se adequar ou então ela não pode ser aplicada. Se eles [municípios] não fizerem uma legislação nova a respeito daquele assunto, ela não pode ser aplicada porque ela contraria a lei federal.
Já tem notícias dessas atualizações?
Sim. Já recebi, principalmente nessa troca de prefeitos que aconteceu em janeiro, muitos secretários de meio ambiente querendo fazer revisão da lei inteira. E isso vai acontecer em nível estadual também.
Quais devem ser os entraves dessa atualização?
Com a diminuição da liberdade do município em deliberar a respeito das suas APPs, essa adequação vai para a câmara dos vereadores. Já tem muito vereador em dúvida: "se o impacto é só local, se o rio nasce e morre dentro da minha cidade, eu não posso legislar sobre isso?" Acredito que veremos muitos entraves, pois a lei federal, em vez de falar normas gerais, estabeleceu detalhamentos. Além disso, é importante ressaltar a questão do zoneamento do município, que, junto com plano diretor, trata do desenvolvimento da cidade. Os municípios do Pantanal, que estão em cima de um ecossistema frágil, estão amarrados, porque para crescer eles terão de respeitar a lei e lá é tudo alagável. E aí, como faz? Não cresce, engessa.