São Paulo, sábado, 17 de março de
2012
Álvaro Pereira Júnior
A morte recente de uma jovem de bicicleta fez ferver os ânimos de
todos os matizes políticos
"A chuva aperta, gotas oleosas de água marrom da cidade, e X pedala em pé,
com a cabeça abaixada, de modo que só tem uma vaga percepção de um borrão de
movimento, vindo da viela à esquerda. A sensação é menos de voar pelos ares do
que de ser erguido e arremessado, e quando finalmente para perto do meio-fio, o
rosto contra o asfalto úmido, seu primeiro instinto é procurar pela bicicleta,
que de algum modo sumiu de debaixo de seu corpo. (...) Então X morre, e tudo o
que pensou ou sentiu desaparece, e se vai para sempre."
A cena se passa em Londres. É chave na trama de "Um Dia", um romance cheio de
lirismo, de David Nicholls. Chamei o personagem de X para não estragar a
surpresa (e fiz a tradução à unha -não tenho a edição brasileira). "Um Dia" é
brutalmente realista. Tudo poderia ter acontecido de verdade.
É esse livro tão verossímil que descreve o atropelamento fatal de um ciclista
na capital inglesa. Será Londres, então, uma cidade onde bicicletas não têm
lugar?
A se julgar por "Um Dia", talvez sim. Mas apresento agora um contraponto, já
me desculpando pela autorreferência.
Em 2004, escrevi no "Folhateen" um texto que começava assim: "No fim da tarde
em que fez 32ºC em Londres, a tiazinha desce de bicicleta, enfrentando o
tráfego, rumo ao túnel que desemboca em Knightsbridge. Usa vestido florido de
algodão e um pequeno chapéu de palha que protege contra o sol ainda alto. Tem,
no mínimo, 65 anos".
Lembro bem. A ciclista de idade não pedalava por uma ciclovia ou em local
protegido. Misturava-se ao trânsito intenso do centro londrino. Nem o túnel
representou obstáculo.
Não me pareceu loucura ou ousadia, mas um fato perfeitamente natural.
Dedução: Londres, amigável para os ciclistas. Será?
Com os dois exemplos antagônicos, tento dizer o seguinte: depende.
Como depende em São Paulo, onde a morte recente de uma jovem de bicicleta, na
avenida Paulista, fez ferver os ânimos de todos os matizes políticos.
De um lado, o conformismo fatalista de quem julga que São Paulo não tem
jeito, não é lugar para bicicletas. É uma visão moralista, na mesma linha de
"bandido bom é bandido morto", "os problemas do Brasil são culpa de políticos
safados" etc. etc.
Na outra ponta, uma tropa que me dá vergonha de ser, eu mesmo, ciclista: os
salafistas da bicicleta, gente burra e primitiva que, diante da própria falta de
horizontes, transforma o "cicloativismo" na causa de suas vidas. São tão
odiáveis quanto qualquer fundamentalista.
Não faz sentido almejar que os ciclistas sejam donos da cidade. Assim como
não há por que decretar que a maior cidade do Brasil é um caso perdido para quem
pedala.
Um exemplo radical: mesmo para quem está acostumado a São Paulo, o trânsito
de Los Angeles é um inferno.
Pois bem, há anos pedalo em uma das principais e mais congestionadas avenidas
de L.A., a Wilshire Boulevard. Nada menos que 25 quilômetros, do centro da
cidade até o Pacífico, cruzando o intenso bairro coreano, o agito pansexual de
West Hollywood, a ostentação de Beverly Hills, a vizinhança universitária de
Westwood, a cidade de Santa Mônica e seus turistas.
No Wilshire, não se pedala nem na raça, nem na ciclovia. Existe a "bike
lane", faixa de bicicletas. Que não fica encostada na calçada, como era de se
esperar, mas a cerca de três metros desta.
No começo, dá medo, porque você pedala com carros passando à esquerda e à
direita. Mas logo percebe que os automóveis nunca invadem a "bike lane". É
seguro, e esta foto explica bem: tiny.cc/qm67aw.
Em Miami, outra cidade de tráfego pesado, onde também já pedalei, a solução é
híbrida: às vezes "bike lanes", às vezes ciclovias clássicas (como nas pontes
que ligam Miami Beach ao continente).
Existe também o caos que funciona, caso de Amsterdã, onde ninguém usa
capacete, parece haver dez bicicletas para cada ser humano, e nenhuma regra.
Em todos esses modelos, um traço comum: respeito mútuo entre motoristas e
"bikers". Nas ruas, claro, mas também no papel, na internet em geral, nas redes
sociais em particular. Quem sabe, um dia, São Paulo chegue a esse estágio. Um
dia.