26/12/11 - 00:00
As mudanças na legislação sobre as florestas, aprovadas no Congresso e avalizadas por uma parte do governo de Dilma, estão na direção contrária à de algumas políticas governamentais - como o Plano Brasil Maior - que tentam colocar o País na trilha da economia do conhecimento - São Paulo
Para José Eli da Veiga, destruição ambiental prejudicará as exportações brasileiras
As mudanças no Código Florestal pelo Congresso Nacional são um "tapa na cara" do Plano Brasil Maior, um dos dois pilares da estratégia que está sendo elaborada no Ministério da Ciência e Tecnologia para tentar recuperar o tempo perdido e colocar o Brasil na trilha da economia do conhecimento. A avaliação é do professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental (Nesa), José Eli da Veiga (fotos abaixo). "O País precisa urgentemente produzir mais inovação, investir mais em pesquisa. Esse esforço começa a ser feito com mais ênfase por uma parte do governo, mas outra parcela do governo está do lado de um caminho bem diverso daquele: o que privilegia a exportação de grãos, carne bovina e minérios e, em consequência, vende barato ao exterior nossos recursos naturais, entre eles a água", afirma o especialista, que também é autor de vários livros sobre a questão do desenvolvimento sustentável.
Veiga cita a expressão cunhada pelo presidente do Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, para ilustrar seu pensamento: "O Brasil da 'Fama' briga com o Brasil do 'Vaco'". "Fama" é a sigla de "fazenda, mineração e maquiadoras" (indústrias meramente montadoras, pois importam componentes para finalizar o processo de produção no País). E o Brasil do "Vaco" é o do "valor agregado e do conhecimento". "É como se estivéssemos em uma encruzilhada, um grande confronto entre dois projetos para o Brasil", completa, lembrando que o Plano Brasil Maior prevê uma série de ações para tornar a indústria mais competitiva. De acordo com ele, a bancada ruralista, que se mobilizou para aprovar no Senado o "perdão" a desmatadores e outras flexibilizações na legislação atual, "quer o Brasil da 'Fama', direcionando a economia para agronegócio, mineração e maquiadoras.
Caminho do futuro
Do outro lado estão o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o Ministério da Ciência e Tecnologia e os setores produtivos, conscientes do valor da proteção dos recursos naturais no comércio mundial. "Esta turma está tentando construir um planejamento que insira o Brasil de modo diferente na economia internacional, cada vez mais intensiva em conhecimento. É o que determinará o futuro das nações e o grau de desenvolvimento que poderão alcançar, diz Veiga. "Infelizmente, para atender à parcela da produção brasileira refugiada no Ministério da Agricultura, as alterações no atual Código Florestal vão no sentido contrário à perspectiva do futuro."
Os ruralistas estão gostando muito dos privilégios incluídos na legislação sobre o uso das florestas nas propriedades privadas, mas as futuras gerações terão de apresentar certificação ambiental da produção, especialmente nos mercados dos países desenvolvidos. "E ter Áreas de Proteção Permanente, elas são básicas nisso. Os ruralistas podem argumentar que hoje isso não é problema, mas estão prejudicando o futuro dos próprios filhos", assinala o professor.
Por isso, na opinião de Veiga, não recompor integralmente os 55 milhões de hectares desmatados e facilitar a destruição de novas áreas florestais é literalmente um tiro no pé. "Não dá nem para dizer que só o curtíssimo prazo foi considerado, mas o passado", sublinha. Não se trata mais daquela concepção de defender a preservação das florestas apenas pensando que as gerações atuais precisam deixar um legado ambiental para as próximas, acrescenta. Tanto que, ainda de acordo com Veiga, a indústria não deverá requerer "isonomia" de tratamento com o agronegócio, buscando retroceder a legislação ambiental vigente que culminou com o recente Plano Nacional de Resíduos Sólidos.
Este plano, que levou vários anos para ser aprovado no Congresso e ainda está em fase de regulamentação, obriga indústria, comércio e consumidores a destinar corretamente os materiais descartados. "Os setores produtivos mais avançados, até do agronegócio, já entenderam que sustentabilidade é uma oportunidade de novos produtos, novos mercados, e que não adianta ir contra essa tendência mundial. Houve um momento em que até resistiram, mas depois os empresários mais modernos entenderam e passaram a adotar em seus processos de produção técnicas que consomem menos recursos naturais", comenta.
Sem veto
Assim como o Palácio do Planalto terá argumentos para justificar a provável concordância de Dilma à anistia aos desmatadores, o governo dará um jeito de se desculpar perante o mundo na Rio +20, a conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, agendada para junho próximo no Rio, e considerada um dos maiores eventos políticos deste início de século. "A Dilma não vai vetar nada no texto, apesar da promessa de campanha de não aceitar a anistia. Se um cara como o senador Jorge Viana [do PT do Acre, relator das mudanças no Código no Senado], um dos mais atuantes parlamentares da bancada dos ambientalistas, diz que não é anistia, então por que a presidente vetaria? Do mesmo jeito vai ser possível explicar aos demais países as mudanças. Afinal, temos 65% de florestas - o que nenhum outro país tem", ressalta.
"Se for para criticar o Brasil, é muito mais pelas emissões do que pelo Código Florestal. Excluído o desmatamento, o Brasil ocuparia o nono lugar no ranking dos países que mais emitem gases de efeito estufa. Mas considerando o desmatamento, somos o terceiro maior emissor, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Até temos uma matriz energética limpa perto dos demais países, mas a destruição das florestas tem efeitos terríveis", lembra Veiga.
O relevante, entretanto, é que as alterações no Código feitas até agora - e que provavelmente serão avalizadas na Câmara dos Deputados e depois seguirão para sanção presidencial - vão na direção contrária à do documento do Brasil apresentado à Rio+20 e ao Plano Nacional de Mudanças Climáticas, observa Veiga. "O compromisso do Brasil é reduzir o desmatamento para diminuir a principal causa da emissão de carbono, o desmatamento. Ninguém duvida que a legislação vai dificultar o cumprimento das metas que o próprio País estipulou para os próximos anos", diz.
Enterro do Código
O Código Florestal, criado em 1965, está sendo enterrado, na avaliação de Veiga. "O que está sendo feito não é mais um código florestal. O atual é um código porque trata do assunto em geral - inclui todos os aspectos das florestas, inclusive terras indígenas e unidades de conservação. Agora já existe uma lei específica para unidades de conservação, outra para terras indígenas, e assim por diante. O que estava faltando era uma lei que regulasse melhor a gestão das florestas dentro das propriedades particulares, apenas essa parte. Na nova lei não aparece a palavra 'código'", explica. "O Código será enterrado de qualquer jeito."
A discussão é se o enterro pelo menos resolverá algumas questões pendentes. "Infelizmente, os problemas são inúmeros, a começar pelo tamanho do texto, que aumentou umas quatro vezes", observa Veiga. De 18 páginas, passou para 60 - e para tratar apenas do uso das florestas nas propriedades particulares. O primeiro "absurdo" é a definição da data para separar o que a bancada ruralista chamou de passivo ambiental (o passado) das regras que vão valer no futuro. O texto fixou 22 julho de 2008, não de 1998, como defendem os ambientalistas. Em julho de 2008, decreto do então presidente Lula previu multas a proprietários rurais que descumpriram a lei por desmatamento. O decreto, que venceu no dia 11 de dezembro, foi prorrogado por Dilma até 11 de abril de 2012 para dar tempo à Câmara de finalizar a tramitação das mudanças no Código.
"O Código foi promulgado em 1965, no governo de Castelo Branco, mas depois os governos - inclusive a ditadura militar - mudaram de atitude em relação à proteção das florestas e não só ignoraram a lei como incentivaram a migração para a Amazônia, onde se desmatava no menor tempo possível e sem o menor constrangimento", comenta. Na época, muitos agricultores descumpriram o Código, "mas de boa fé, porque foram induzidos a isso, pois o próprio governo ignorou a lei".
Mas, na avaliação de Veiga, isso começou a mudar com a Constituição de 1988, que tem um capítulo avançado sobre meio ambiente. "O Congresso se mobilizou e votou uma a Lei dos Crimes Ambientais, amplamente debatida e divulgada. A partir de 1999, quem derrubou, sobretudo em Áreas de Preservação Permanente (APP), que abrangem beiras de rio, encostas, nascentes, ou em reservas legais, praticou um crime conscientemente", observa Veiga.
Nas APPs o desmatamento é muito mais grave do que nas reservas legais, onde o Código determina a preservação de determinado percentual de cada bioma - varia de 20%, no sudeste, a 80%, na Amazônia -, sem levar em conta se a terra é inteira de solos de altíssima aptidão agrícola, o que torna irracional a manutenção da mata, como argumentam os ruralistas. "Os agricultores até têm certa razão ao reclamar das reservas legais, mas destruir florestas em APP é algo que prejudica toda a sociedade, inclusive os agricultores. No entanto, foram desmatados 55 milhões de hectares de APPs no Brasil.
Deste total, 11 milhões de hectares por lavouras e é preciso reconhecer que parte dessas lavouras cumpre as funções da mata, ou seja, não causam erosão, assoreamento. Não faria sentido eliminar arrozais no Rio Grande do Sul nem plantações de maçã em Santa Catarina ou cafezais em Minas, nas encostas. Nesse sentido, as mudanças viriam consolidar, atualizar o Código", defende.
Indulto ao desmatamento
Mas não. Quem desmatou APPs entre 1998 e 2008 não será anistiado, mas beneficiado por um indulto. "Anistia é quando existe dúvida sobre a situação em que a ilegalidade aconteceu. No entanto, quando o crime foi constatado, julgado e com sentença, mas existe o perdão, isso é indulto. Quem desmatou entre 1998 e 2008 vai receber um indulto, muito pior que anistia", alfineta Veiga.
Inaceitável, portanto, é o "indulto" concedido pelos congressistas aos responsáveis pelo desmatamento de 44 milhões de hectares de APPs para a formação de pastagens, condena Veiga. "É crime de lesa-humanidade. E se uma lei faz isso, pode ser até constitucional, mas é criminosa. Qualquer pessoa que tem o 'beabá' da agronomia sabe disso", sublinha o especialista. Ele considera "ilógico" que os ruralistas tenham aceitado recompor parte das reservas legais destruídas, mas se recusaram a essa reparação no caso das APPs.
Veiga admite alguma flexibilização - como a trazida em relação às reservas legais, que permite o proprietário compensar fora do imóvel a mata derrubada, e até mesmo em condomínio. "Em terras de maior aptidão agrícola, é mais vantagem utilizar toda a terra para produção e pagar outro proprietário, em terras mais fracas, para fazer reserva. Mil vezes melhor deixar a floresta lá", explica. "A lei que disciplina a floresta deveria justamente orientar para essa racionalidade. Os congressistas aceitaram manter altos percentuais de reservas legais e liberaram geral nas APPs."
O segundo "absurdo", segundo Veiga: dos 44 milhões hectares de floresta roubados pela pecuária, só cerca de 10% serão reconstituídos, segundo levantamento de cientistas, nos 15 metros de cada lado dos rios. O terceiro problema é a nova lei ter estendido a todos os imóveis rurais de até quatro módulos fiscais a liberação dada à agricultura familiar. "Desobrigar todos os imóveis desse tamanho de ter reservas e proteger APPs só seria justo se todos fossem de pequenos agricultores, mas muitos deles são chácaras de lazer e não se enquadram nos critérios que caracterizam a propriedade familiar", diz Veiga. Além do tamanho, a propriedade deve ser a principal fonte de renda da família.