domingo, 19 de fevereiro de 2012

LOUCURA ESFUMAÇADA


Luiz Mendes: "Tomado por uma tuberculose galopante, nem assim desistia de fumar"

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08.02.2012 | Texto por Luiz Alberto Mendes Fotos Reprodução



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Se ainda fumasse, teria parado agora. Ontem assisti a uma cena de extrema pungência, cujo desenlace, ocorrido hoje, chocou-me profundamente. A força de seu impacto ainda vibra em mim, definindo-me completamente quanto ao cigarro.

Parto da premissa de que o objetivo primeiro e último de nossa existência é aprender. O homem é um ser que aprende. Acredito que todo fenômeno possui alguma riqueza cuja finalidade é engrandecer a vida. Não há como negar: quando se está estressado, nervoso, fumar um cigarro produz algum alívio. Ajuda a parar e a organizar os pensamentos. Por mais que os médicos digam que não. Há poucos prazeres iguais aos primeiros tragos após o café matinal. Às vezes é tudo o que precisamos para começar o dia. Minha reclamação é que não dá barato, é malcheiroso e nocivo à saúde.

Claro, não vai aqui nenhuma censura. O que não é nocivo à saúde? Carne, açúcar, sal, café (até o leite e o ovo estão sendo malfalados), verdura? Mas, em última análise, somos donos de nossas vidas. Fazemos dela o que queremos. Sou a favor da liberdade. Liberdade de existir, de fumar, de comer tudo isso e até de me matar. É óbvio que em tudo há consequências. Mas somos constituídos de tal maneira que sempre podemos retomar e reiniciar. Parar um pouco para pensar pode até ser estrategicamente interessante.

Somos o que fizemos de nós. Até os fracassos e as derrotas nos construíram, nos ensinaram. O vício quem sabe seja um descanso quando a realidade se tornou excessiva, quiçá insuportável. Não há como julgar. De uma coisa tenho certeza: é dever respeitar.

Morte na madrugada

Estive ontem visitando um amigo hospitalizado. Vivia suas últimas horas tomado por uma tuberculose galopante, com crateras de 5 milímetros nos pulmões. Irreversível. Já não falava e respirava com extrema dificuldade. Seu rosto era caveira com enormes olhos lá no fundo do rosto, boiando, assustados. Durante toda a evolução da doença, ele fumou. Era tão viciado que parecia amar mais a fumaça do cigarro do que a própria vida. O médico o proibira de fumar desde o princípio. Ele só fez aumentar o vício. E ali estava o resultado.

Morrer todos morrem. Morreremos nós também. Acho morrer tão elegante quanto viver. Não se anunciam nascimentos. A morte tem seu espaço nobre reservado em todos os jornais. Mas morrer porque não se consegue vencer um vício me parece bastante deselegante.

Parei à beira de seu leito, olhando-o compungido. Não havia palavras nem gestos possíveis. Procurava apenas estar presente com minha amizade. O amigo olhava-me. Senti que, lá por dentro do lago escuro de seus olhos, tudo era angústia e medo. O sol lá fora parecia perfurar crânios e pedras.

De repente, suas mãos, como que adquirindo vida própria, lentamente, iniciaram movimento dirigido até um maço de cigarros à cabeceira da cama. Com imensa dificuldade retirou um e riscou o isqueiro para acendê-lo. Demorou-se queimando o cigarro, com toda a alma concentrada naquele ritual. Quando percebeu que o cigarro já fumegava, uma luz riscou seu rosto de esperança. Era a magia negra do vício a emitir estímulos.

Por um instante, seu corpo inerte ganhou energia, saída sei lá de que fonte. Trouxe o cigarro ao rosto. Já não havia forças para puxar a fumaça. Doía em mim sua frustração. Dava vontade de fumar por ele. O que lhe restava de vida estava ali convertido no ato de inalar aquela fumaça.

Havia uma avidez, uma espécie de loucura cega. Seus olhos se arregalavam no esforço desesperado que fazia. Quando a fumaça atingiu o pulmão, houve uma satisfação. Um brilho se esboçou em seu olhar. Houve um intervalo de tempo em que a vida foi suspensa de sua miséria e dor.

Não demorou e sobreveio convulsão. Algo parecido com tosse, mas sem som, acometeu-o violentamente. Seu rosto denunciava uma dor tão profundamente sentida, que julguei fosse morrer naquele instante. Demorou uma eternidade para se acalmar. E eu ali olhando, sentindo-me culpado nem sei de quê.

Morria e não se dava conta, preocupado que estava na busca da satisfação de seu vício. A fumaça do cigarro se tornara a única realidade. Ele conseguira sucesso, fugira de vez. A morte era a alternativa. Acredito seja esse o último estágio do vício: a loucura.

Telefonaram há pouco do hospital; meu amigo morreu na madrugada. Que descanse em paz.

*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail élmendesjunior@gmail.co
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